Acertar na entrada é a melhor saída

Essa é de 1999. Sim, faz tempo. Estava no meu primeiro ano da graduação em física e minha principal forma de deslocamento para a faculdade era o transporte público. Em uma das idas ou vindas, lembro-me de uma conversa entre um aluno e um professor, sentados no banco em frente a mim, no ônibus.

Dizia o aluno: “mas professor, desde quando o vestibular avalia conhecimento?”. Foi um tema que chamou a atenção, afinal eu havia acabado de passar pelo maior vestibular do país, a FUVEST. Então, foquei a atenção na conversa dos dois, já que era um assunto que me interessava e ainda estava “quente” naquele início de ano.

E o aluno continuou: “Vestibular não avalia nada. É gincana! Sim, professor, gincana! Não ganha quem sabe mais, ganha quem pinta mais bolinhas certas!”.

Só achei graça na hora e, embora achasse que a probabilidade de pintar bolinhas certas fosse maior para aqueles que estudassem (ou, na verdade, que estivessem mais bem treinados), não pude discordar.

folha de resposta

A gincana de pintar bolinhas ainda é o principal mecanismo para seleção de alunos para entrar nas faculdades. E hoje, a maior delas é o ENEM. Pelo menos, a maioria dessas provas exige que o aluno escreva, no mínimo, uma redação e que responda a questões abertas, o que deveria permitir, teoricamente, avaliar seu poder de argumentação e alguns outros aspectos que passariam batido apenas com a prova objetiva.

Você utilizaria esse método para contratar alguém em uma empresa?

É bem verdade que existem empresas de ponta, principalmente as grandes consultorias, que utilizam em uma das fases do processo seletivo provas com questões de raciocínio lógico, raciocínio verbal, inglês, e até alguns modelos pré-formatados importados como o GMAT. No entanto, elas não se contentam em escolher simplesmente as pessoas que mais pintaram bolinhas certas (mesmo que seja muito improvável um desempenho destacado nesse tipo de teste ser obra do mero acaso). Após a prova, algumas empresas fazem dinâmicas de grupo, outras fazem etapas de resolução de casos e, em praticamente 100% dos casos, são realizadas entrevistas com os candidatos. Claro que também há exageros até nessa parte. Mas parece ser um crivo mais sensato.

O objetivo é simples: minimizar a probabilidade de colocar uma pessoa inadequada para desempenhar determinada função. Nenhuma prova ou teste consegue simular a real condição de trabalho a que a pessoa será submetida. Mas uma avaliação criteriosa do conjunto pode tentar mapear se os candidatos possuem ou não as competências necessárias para o que as empresas procuram. E as empresas contratam porque têm problemas, não por caridade. Querem pessoas que consigam resolvê-los.

E por falar em problemas, é inegável que o setor público no Brasil os tem aos montes. Talvez muito mais complexos do que os da maioria das empresas. Precisamos, então, de pessoas muito qualificadas para resolvê-los. Não falo só do gabinete dos ministros e secretários, mas, principalmente, da base de funcionários que vai colocar a mão na massa, que vai colocar as políticas (para o bem ou para o mal) para funcionar.

E como é feita a seleção na maioria dos casos? Acertou. Gincana!

É possível contar nos dedos os exemplos de concursos públicos que utilizam outras fases, como provas com questões abertas ou que levem em conta o passado profissional dos candidatos. O problema? É que ao utilizar fases menos “objetivas” o risco de impuganção do concurso aumenta exponencialmente. A meta parece ser a de ter o mínimo de questionamento possível na esfera jurídica. A preocupação é com a impessoalidade e com a isonomia e não com a gestão.

Para quem tiver interesse na questão, recomendo uma das entrevistas da série Conversações, produzida pela Unidade Central de Recursos Humanos do Governo de São Paulo. Tive o prazer de trabalhar em algumas ocasiões tanto com o Thiago Souza Santos, diretor da Unidade, quanto com o meu xará, Fernando Coelho, professor da USP. Vale a pena assistir pelo menos a esse segmento da conversa entre eles:

Acrescentando ao tema, a excelente análise de outro xará meu, o Fernando Lanzer, sobre os aspectos culturais que ajudam a entender a corrupção no Brasil, vai ao ponto. Porém, na minha humilde opinião, também é necessário colocar na mesa a questão da entrada no setor público. E isso se liga diretamente aos concursos e à motivação de quem vai atrás dessa perspectiva de carreira.

A busca por estabilidade e por um ganho certo (e até uma perspectiva de aposentadoria) parecem ser mais fortes do que as características individuais da pessoa e as funções que serão desempenhadas após o sucesso na gincana, digo, na prova. Essa busca pela estabilidade, que motiva muitos dos concurseiros, pode ser norteada pela dimensão cultural Orientação para o Desempenho versus Qualidade de Vida, uma das dimensões culturais do trabalho seminal do psicólogo holandês Geert Hofstede.

Antes de mais nada, é inegável o nível de dedicação, esforço e estudo necessários para se ter sucesso na maioria dos exames de concursos públicos. Contudo, um aspecto não é levado em conta: será que esses candidatos bem classificados têm o perfil ou têm as competências de que nós aqui em determinado órgão público precisamos?

Porém, se não colocarmos as pessoas com o perfil de competências adequado nas funções públicas, a porta para o mau desempenho se abre. Ainda mais se o desempenho não é, culturalmente, uma prioridade. E como tenho dito, a incompetência precede a corrupção. Não porque os novos ingressantes no serviço público terão uma propensão maior à corrupção, longe disso. Mas porque, ao não ter o perfil de competências necessário para a solução dos problemas de gestão (por exemplo), o caminho fica facilitado para os mal intencionados que conhecem e exploram as falhas do sistema.

Em 1999, quando vi aquele diálogo no ônibus a caminho da faculdade, se eu fosse a algum restaurante, precisava escolher o que iria comer com base na coluna da direita do cardápio, isto é, pelo preço. Depois olhava a coluna da esquerda para ver o que era e se eu gostava ou não dos ingredientes que compunham aquele prato.

Noto que boa parte das pessoas que prestam concursos públicos têm utilizado uma sistemática parecida. Olham na coluna da direita para ver os salários (buscam os mais elevados, é claro, ao contrário do que eu fazia no restaurante) e depois vão para a coluna da esquerda para ver se possuem os requisitos (isto é, formação exigida). E aí parece não importar se a função é de papiloscopista da polícia federal, analista administrativo de uma agência reguladora ou fiscal da receita federal.

escolhendo concurso

Agora, vamos combinar que são atividades completamente distintas e que exigem perfis que deveriam, em teoria, ser completamente diferentes. Quem tiver paciência pode procurar as provas e editais desses concursos e ver se há uma grande distinção no processo seletivo ou no conteúdo do exame. Não há.

Vale a pena dar uma olhada em outro segmento da conversa a que me referi acima:

Outra questão a se colocar em pauta, é que o concurseiro típico, pelo menos nos concursos mais desejados, é alguém recém-formado, na “pegada” para fazer provas. Isso, em si, não é um problema. Mas é preciso levar em conta que aquela será a primeira experiência de trabalho de grande parte dos ingressantes. Aqueles que já estão na organização terão um papel crucial na formação dessas pessoas. E isso deve ir muito além da clássica repreensão de que os novos funcionários estão “trabalhando demais”.

Uma etapa de formação ainda durante a seleção pode ser um bom caminho. Um acompanhamento próximo nos primeiros meses e anos dos recém-ingressados pode garantir um desempenho superior lá na frente, ou até mesmo, encontrar outro lugar para que aquele novo funcionário possa trabalhar melhor, de acordo com suas competências. As empresas fazem isso com a preparação daqueles que podem vir a ser executivos, os trainees, e com investimentos crescentes em educação corporativa.

De uma forma geral, o que se quer é que aqueles recursos obtidos pelos nossos impostos sejam bem aplicados (e aqui está a alusão aos patinhos amarelos da figura em destaque neste post). Então isso vale para todo o sistema, desde quem entra pelas provas dos concursos até quem é escolhido para ficar, no estágio probatório. Este é justamente um elemento negligenciado no processo. https://www.youtube.com/watch?v=HgvtMGHzCNAO estágio probatório não pode ser um mero cumprimento de formalidade. Ele pode ajudar a barrar aqueles que não têm o perfil para o trabalho

Repensar completamente qual o perfil das pessoas que precisam entrar nos órgãos públicos para resolver os problemas complexos que aí se apresentam está na base de uma mudança significativa das nossas instituições. Talvez essa medida não garanta a solução dos problemas, mas, uma vez que tudo que é feito dentro de uma organização é feito por pessoas, tentar selecionar as melhores dentro da perspectiva do que precisa ser feito, pelo menos aumenta a chance de que isso ocorra. O crucial é definir mais criteriosamente quem vai entrar. Essa parece ser uma boa saída.

 

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O custo do controle

Antes: você entra para fazer a troca de óleo do seu carro na oficina (na verdade, não é uma oficina, mas uma troca de óleo mesmo). O ambiente é limpo e organizado. Há espaço suficiente para as plataformas elevatórias para os automóveis e para que os atendentes que executam o trabalho (o popular “trocador de óleo”) circulem sem atrapalhar uns aos outros.

Um detalhe chama a atenção: um enorme balcão separa os produtos do restante da loja. O estoque de lubrificantes automotivos de todas as espécies e variedades é inacessível para os “trocadores”. Atrás do balcão está o “fiscal”, a pessoa encarregada de ir até o estoque e buscar o produto que o “trocador” pediu, após ver a especificação do lubrificante adequado ao veículo do cliente e, eventualmente, entrar num acordo sobre qual marca será utilizada na troca. Vez ou outra, o “fiscal” se engana e traz o produto errado. Precisa voltar ao estoque, quardar o produto errado e pegar o certo. Ou descobre que o produto acabou e precisa perguntar qual outro pegar ao “trocador”.

O sistema é notavelmente ineficiente, mas parece funcionar. O antigo dono da oficina acreditava que era a melhor maneira para evitar ser lesado. Afinal, há muito “desvio” de produtos. É preciso instalar um sistema de controle bastante eficaz.

 

Depois: você entra para fazer a troca de óleo do seu carro na oficina (na verdade, não é uma oficina, mas uma troca de óleo mesmo). O ambiente é limpo e organizado. Há espaço suficiente para… Epa! Cadê o balcão? Agora os produtos estão espalhados pela loja, organizados em pequenas prateleiras, facilmente acessíveis aos “trocadores”. Ele decide qual o produto que será colocado no automóvel e pronto. É só pegar na estante ao seu lado e começar o serviço. Acabou a barreira. Acabou o controle “eficaz”. Mas e os “desvios” de produtos? Cessaram? Provavelmente não.

Conversando com o novo proprietário da loja descubro o motivo: “a estrutura que era utilizada para manter o controle custa muito mais caro do que as perdas que tenho pelos desvios”. Mas para quem pensa que então agora liberou geral, ele alerta: “Eu estou de olho”. Se um funcionário é pego subtraindo produtos da loja, ele é prontamente demitido. “Todos sabem como as coisas funcionam aqui. A gente tem uma relação de confiança”.

 

O controle excessivo

Com esse relato não pretendo fazer apologia ao ‘não controle’. Minha intenção é iniciar a discussão pela ideia de que é necessário saber dosar. Da mesma forma que o lubrificante do seu carro tem que estar no nível correto (nem acima e nem abaixo dos dois risquinhos da vareta de óleo do motor), com a densidade correta (dentro dos limites estabelecidos pelos fabricantes), o sistema de controle, em qualquer atividade, precisa ser compatível com o que se está fazendo. O seu nível de complexidade tem que vir na mesma proporção do benefício que ele traz.

Quem já foi morar em um prédio recém-construído sabe do que estou falando. As primeiras reuniões são sempre a mesma coisa: janela da área de serviço, pode ou não pode fechar a sacada com vidro (para aqueles ‘privilegiados’ das varandas gourmets), demarcação das vagas de garagem, quem vai ser o síndico etc. E um tópico sempre deixa as pessoas mais agitadas: a segurança. Ainda mais para quem vive em grandes centros, onde a sensação de segurança é baixa.

Aí alguém que trabalha em uma empresa de segurança (que feliz coincidência) se oferece para ser síndico ou fazer parte do conselho e todos ficam muito tranquilos. Então, implementa-se um sistema de controle que envolve muitos postos para vigias e 30, 40, 50 câmeras. Ou seja, muito mais do que um simples edifíco de torre única, com 50 ou 60 apartamentos precisa. Eu sei do que estou falando porque passei por isso. Eu era a triste voz no deserto alertando sobre o exagero.

Alguns anos ou meses depois vem a constatação. Os custos do condomínio são altos. E onde está o contrato que mais onera os custos? Exatamente. O de portaria e vigilância. E aquele que foi o primeiro síndico? Já se mudou. Foi para um outro prédio recém construído. Já ouvi dizer que são as próprias empresas de segurança que estimulam isso. Outros acham que é um modus operandi apenas da pessoa, que provavelmente ganha comissões pelas vendas. Não vem ao caso aqui.

O gancho é o mesmo da troca de óleo: um sistema de controle superdimensionado.

Aprendi quando era diretor dos Planetários de São Paulo que o segurança desarmado do nosso prédio no Parque do Ibirapuera era muito mais eficaz para coibir o vandalismo do que a cavalaria armada de um museu ali próximo. Talvez por já ter trabalhado na fundação casa, o segurança do planetário sabia que um diálogo responsável era mais eficaz que uma tonelada de ameaças. Enquanto estive lá essa era a abordagem e funcionava. Era um sistema sem exageros, eficaz. Consertar uma janela de vez em quando seria mais barato que manter um sistema rebuscado de vigilância 24 horas. Mas nunca tivemos uma janela quebrada ou um muro riscado.

 

A diferença entre o remédio e o veneno é a dose

Quem estudou um pouquinho de administração talvez já tenha visto algumas das definições clássicas. Em todas elas o controle sempre aparece como uma função primordial. E de fato é. Como vou saber se o que estou fazendo está certo sem algum tipo de controle? Obviamente, preciso primeiro saber o que estou fazendo. E a partir daí vou ter uma ideia de como controlar para saber se deu certo. Nem acima, nem abaixo do risquinho. Na medida certa. Na proporção do benefício gerado.

Aliás, esse é um termo que gera muita controvérsia. Quando ministro aulas de administração para pessoas ligadas à área de educação, por exemplo, tenho que tomar cuidado. As pessoas quase pulam da cadeira quando ouvem o termo ‘controle’. Aí é hora de desfazer o mal entendido. Quando trazemos a ideia para mais perto de Paulo Freire e sua visão da educação como um processo de ação-reflexão-ação, fica muito mais fácil trabalhar a ideia de planejamento-execução-controle da administração.

Esse controle da gestão é o de avaliar, de verificar se tudo corre de acordo com os planos ou em que grau divergem (até para eu saber se preciso mudar o plano ou preciso melhorar a forma como estou fazendo as coisas) e não de “ficar em cima”, cerceando a liberdade, destruindo a autonomia. Contudo, há muitos gestores que confundem e estipulam controles que viram fins em si mesmos.

E errar na dose é muito fácil quando se esquece o propósito do que se está fazendo e não se leva em conta a relação de custo-benefício de qualquer sistema implantado. Estipula-se um fiscal, depois o fiscal do fiscal e, mais adiante, cria-se uma equipe para gerenciar os fiscais e outra para trabalhar todas as informações geradas nas fiscalizações. Como essas pessoas não podem ficar sem trabalhar, nos momentos de baixa ocupam-se, isto é, encarregam-se de criar mais mecanismos de controle e entupir de trabalho aqueles que estão tentando, por exemplo, vender. Passa-se o tempo e a gestão se pergunta por que a organização é tão ineficiente.

As medidas desse exemplo são obviamente exageradas. Mas, no dia a dia,  as empresas não percebem que estão fazendo isso. O que parece é que há organizações que invertem a lógica e moldam todas as suas políticas e práticas para facilitar o controle e não o controle para facilitar a prática. É o vendedor que perde a oportunidade de fazer um negócio excelente, mas que o “sistema não deixa”. É o relatório desnecessário que toma tempo do funcionário que poderia estar pensando em coisas mais relevantes (até para colocar à prova se o funcionário sabe pensar em coisas mais relevantes). E por aí vai. Não dá para negar que uma grande parcela dessas medidas é pura e simplesmente ‘burrice‘.

Há muito tempo (cerca de uns 10 anos, mais ou menos), li o livro de um monge alemão, A Sabedoria dos monges na arte de liderar pessoas, que passava os ensinamentos da doutrina beneditina para a prática da liderança. O autor, Anselm Grün, publicou outras obras mais ou menos nessa linha desde então, mas esse foi o único que li. Em um dado momento, lembro-me de que o autor desenvolve um raciocínio, partindo da sabedoria dos monges beneditinos, de que o foco excessivo no controle tem como resultado um adoecimento das pessoas que trabalham na organização. Ou seja, errar na dose do controle gera aborrecimento e as pessoas aborrecidas podem tanto trabalhar contra a empresa, contentando-se com o mínimo necessário ou, frustradas, acabam ficando doentes mesmo. A diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

 

Confiança e controle

O vocábulo controle vem do francês contrôle, que é uma contração do termo contrerôle, originado no latim, contrarotulus, que é a fusão dos termos contra, que quer dizer contra mesmo e rotulus, que é o diminutivo de roda. Isso tem a ver com o sistema contábil de partidas dobradas, originado nos tempos medievais, em Veneza, em que eram utilizados dois rolos de papel um para o devedor (o rotulus) e outro para o credor (o contrarotulus). Daí a necessidade de ser usar o contrarotulus ou o controle para garantir que as operações comerciais estavam em conformidade com os acordos.

Ninguém está falando para deixar os portões abertos, escancarados. Mas também sabemos que não é a existência de 50 câmeras e de 10 seguranças de terno e gravata que vai deixar aquele edifício instransponível. Reitero que o nível de controle a ser implantado depende do contexto e do benefício gerado. Veja esse vídeo com um “teste de honestidade” comparando Brasil e Estados Unidos (para variar):

 

Ok. Dá para perceber que não é em qualquer situação que a confiança irrestrita funciona. Como no caso da indignação, também pode ser uma questão cultural. Nesse caso, é preciso que um vendedor esteja atrás do balcão. Mas o relógio vai deixar de custar 20 reais (e custará muito mais se tivermos que colocar um fiscal do vendedor, o fiscal do fiscal e tantos outros).

Então, talvez seja como na troca de óleo do início do post. Para mudar o sistema de controle, antes o proprietário também mudou o sistema de confiança. Tratou os “trocadores” como adultos e estabeleceu limites claros para sua ação, com mais flexibilidade, mas também com mais responsabilidade. Essa talvez seja a diferença para o vídeo. O que se percebe é que é a confiança que lubrifica as relações humanas. Quando ela seca ou quando ela vaza, o motor para.

 

 

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Um pouco de indignação vai bem

Nesse fim de semana fui a um parque de diversões com a minha família. Além da minha esposa e do meu filho de 2 anos, estavam conosco minha irmã e suas duas filhas de 13. As três, após dois anos morando no exterior, vieram passar uns dias no Brasil.

Lá, ao lado da fila de uma das atrações mais concorridas, havia uma placa com uma das regras do parque em destaque: “Não guardar ou ultrapassar lugares na fila”, ou seja, o parque (corretamente na minha visão) manifesta-se contrário à prática do “migué”, de uma pessoa ficar na fila, se “sacrificando” pelo “bem” dos demais e, quando estiver na vez do “esperador” outras pessoas que estão com ele apareçam de repente, engordando o início da fila e aumentando a espera dos demais.

Isso é furar a fila. E qualquer pessoa de bom senso concordaria com isso. O que talvez surpreenda é o grau de ‘flexibilidade’ com que nós brasileiros lidamos com as regras. Temos muitas regras, mas também temos muita burla. E nesse sistema, há um ciclo de reforço em que, quanto mais regras, mais trapaças para burlá-las acontecem, o que leva a um aumento na criação de regras e o ciclo se repete. Esse comportamento é um dos chamados arquétipos de sistemas. Discuti um pouquinho de visão sistêmica (ou da falta dela) aqui, onde já recomendei o livro do João Arantes, Desvendando Sistemas. No post de hoje, tomo a liberdade de tomar emprestada uma de suas charges.

Arquético 9 - contornar as regras (João Arantes)

Porém, minha intenção não é criticar a existência de regras, mas falar da tolerância que temos às pequenas trapaças.

Existe uma outra prática recorrente que é a de cumprir a regra, mas não cumpri-la. Um exemplo? É o caso da pessoa que já está há um bom tempo na fila e, após uma longa espera, dar uma “saidinha” bem “rapidinho”, pedindo para o desconhecido de trás guardar o seu lugar. “Estou apertado(a)… é só um xixizinho”, diria a pessoa – o uso do diminutivo em todos esses termos é bastante sintomático. Em geral, aceita-se, afinal “a pessoa estava todo esse tempo na fila comigo, tudo bem se ela der uma saidinha e voltar para o ‘seu lugar de direito’. E tem mais: poderia ser eu”.

É… Poderia ser você ou eu. Mas não deveria. Isso é guardar lugar na fila e, no caso do que aconteceu no parque nesse fim de semana, há uma placa ali com letras garrafais lembrando que a prática é proibida.

Ao presenciar isso, talvez influenciada pelo tempo vivendo fora do Brasil e por não se lembrar de como as coisas “funcionam” por aqui, minha irmã se indignou e contestou a “saidinha” da pessoa. Como acharia natural qualquer europeu ou estadunidense, ela perguntou: “por que você não foi ao banheiro antes de vir para a fila? Eu fui. E não pude entrar antes na fila. Se eu não pude, por que você pode?”.

As outras pessoas, é claro, estranharam a reação da minha irmã e não a da pessoa que queria violar as regras. Como ela me disse mais tarde, “no fim, eu que fiquei pagando de louca”. E mais, supresa por ninguém ter se indignado. Ao contrário do que ela presencia no seu dia a dia fora do Brasil, como a mulher no supermercado que se recusa a pagar pelas folhas estragadas da salada, removendo-as antes de pesar o pé de alface. Aqui parece normal pagar sem reclamar pelo mau atendimento, se conformar com a cultura do “Bom o suficiente”, ideia muito bem apresentada nesse post do blog Não Gostou Faz o Seu, um pouco na linha do que comecei a discutir aqui. É achar normal enriquecer um pouco mais o supermercado e comer porcaria em casa. Afinal, é melhor não se indispor com ninguém, não é mesmo? Parece que isso é mais forte do que fazer valer seus direitos.

Numa cultura de acomodação como a nossa (em vários sentidos), a indignação na fila pode ser estranha no começo, mas é ela que pode ajudar os serviços melhorarem. Serviços como o Reclame Aqui são de grande valor. Mais útil do que meramente centralizar as reclamações e criar rankings, vai ser o uso que os gestores das empresas fizerem das informações que ali estão (e não simplesmente “se livrar” das reclamações para não ficar ‘mal na fita’).

E, nesse momento, proponho um pequeno experimento ao leitor. Observe uma fila que é furada no supermercado, por exemplo (ou fure você mesmo a fila, ou ainda, indigne-se enfaticamente contra a pessoa que faz isso, apenas para ‘estudar’ as reações dos outros). Em qualquer lugar em que há mais educação e respeito às regras e à convivência, todos se indignam contra o ‘furão’, que rapidamente desiste de furar a fila. Mas em nosso país, o que eu sempre vejo acontecer é um fenômeno, no mínimo, curioso: rapidamente, o único indignado contra o ‘furão’ vira o vilão e parece que todos se voltam contra o ‘reclamão’. Se o protesto parte de uma mulher, dirão que é uma “mal comida”; se vier de um homem dirão que “é um corno”, que não deveria ficar reclamando, afinal, é só uma garrafa d’água (ou um iogurte, uma cerveja, ou uma comprinha de uns poucos ou 15 itens). E é incrível como sempre se coloca a vida conjugal das pessoas na mesa em situações assim… Triste realidade.

A questão, é que, em nossa cultura, temos a tendência de nos identificar com o trangressor. “Poderia ser eu”, “é só um instantinho”, “eu estou com pressa”, “estou com dor de cabeça”, “não vai prejudicar ninguém” etc. Vale para a fila, vale para não parar na faixa de pedestres no trânsito, vale para entregar aquele relatório atrasado e vale para não fazer o atendimento bem feito, para citar apenas alguns exemplos.

Isso é reflexo, dentre outros fatores, de uma total falta de planejamento e de organização. Não somos capazes de prever ou antever que uma espera na fila pode demorar mais do que gostaríamos e não tomamos medidas preventivas para amenizar a angústia na espera (isto é, ir fazer o ‘xixizinho’ antes de ir para a fila).

Na gestão é assim também. Não planejamos direito e depois buscamos jeitos para contornar as rígidas regras que nos cerceiam. Aí a culpa é da regra (ou daquele que a criou). Um alemão fica atônito diante do nosso jeito de não planejar (e nos os achamos ‘quadrados’ por serem tão rígidos). É como no caso do “aí deu vermelho” que comentei aqui. Não fazemos um planejamento adequado e aí culpamos algum fator externo que nos atrapalha (mas que não nos atrapalharia se o tivéssemos simplesmente levado em conta – o bom e velho planejamento).

Em psicologia, esse é o chamado de viés de atribuição ou erro fundamental de atribuição. O professor John Sterman, do MIT, vai um pouco mais longe em sua introdução ao curso de dinâmica de sistemas (por volta do minuto 6:30, para quem tiver curiosidade) ao dizer, em tradução livre (o grifo é meu):

Quando as pessoas dizem “Oh, não foi minha culpa. O motivo por que falhamos foi um efeito externo, um efeito colateral imprevisto, algo que veio de fora [coloque sua desculpa aqui no sublinhado], não foi culpa minha”, estão querendo persuadi-lo de que são, de fato, grandes gestores e não devem ser responsabilizados pelos maus resultados. Na verdade, quase todo o tempo, isso é, pelo menos parcialmente, resultado de suas próprias decisões anteriores. Feedback que eles não entendem e não reconhecem.

E o que eles na verdade estão tentando fazer é convencê-lo de que não foi culpa deles. Mas o que estão realmente mostrando é o quão limitada, estreita e inadequada é sua compreensão do sistema em que estão inseridos, o que chamaríamos de seu modelo mental.

Numa inversão sem tamanho, a indignação parece representar um problema externo, algo errado com o cliente (“o corno” ou “a mal comida”) e não com o serviço. Gestores que pensam assim evidenciam sua visão estreita e limitada do mundo. Um modelo mental deficiente, mas muito encontrado por aí.

Ao contrário, os gestores deveriam tirar proveito da indignação e até incentivá-la. É um ótimo instrumento para melhorar os serviços. E uma boa gestão também pode incentivar o cumprimento das regras.

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Tempo estimado de espera na fila na Walt Disney World: uma simples informação pode estimular o comportamento desejado e inibir os ‘furos’ de fila.

Quem já foi para a Disney me relatou que existem marcos nas filas, em função de seu comprimento, indicando quanto tempo demora, em média, daquele ponto até a atração desejada. Além da própria cultura do local favorecer, essa medida simples ajuda a inibir as pessoas a furarem filas ou a guardarem lugar, pois uma entrada repentina de gente à frente empurraria a fila para trás, alterando toda a previsão de demora estipulada e, adivinhem só, gerando indignação, o que inibiria a trapaça. É uma forma de estimular o comportamento que se espera das pessoas.

São os gestores das empresas que devem pensar em medidas simples como essas para facilitar a vida das pessoas. Ou, no mínimo, devem observar atentamente a indignação alheia. Insights podem vir de qualquer lugar. E nós, na posição de consumidores, devemos nos sentir livres para ficar indignados e, em vez de estrahar, dar apoio aos que reclamam e se somar no coro. Como falou minha irmã sobre esse episódio: “se nos calamos e não nos mobilizamos para tirar um espertinho da fila, como fazer para tirar um incompetente ou corrupto de Brasília?”

 

Para fechar, compartilho aqui o vídeo produzido pela Reclame Aqui, chamado Jantar da Vingança. O que será que os diretores das empresas que foram “vítimas” da pegadinha aprenderam com sua própria indignação?

 

 

 

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Começou em pizza

Não era uma noite qualquer naquela pizzaria. Aqueles que deveriam ser os clientes estavam do outro lado da porta, na cozinha, abrindo as massas e as jogando para o alto, colocando molho e queijo e pondo no forno as pizzas que comeriam logo em seguida. Não era uma noite qualquer não pelo fato de os clientes estarem na cozinha, mas por ser uma data simbólica para aquele grupo de pessoas.

Aqui no Brasil, costuma-se dizer que quando as coisas (uma investigação, por exemplo) não vão dar em nada acabam em pizza. Ali era o contrário. Segundo o líder daquele grupo, aquela noite em que eles fizeram suas próprias pizzas foi o início de tudo.

Dizem que a expressão “acabou em pizza” foi cunhada pelo jornalista Milton Peruzzi, na década de 1960, ao se referir a uma reunião conturbada da diretoria do time do Palmeiras. Os ânimos acirrados e as disputas políticas durante 14 horas de reunião só teriam sido aplacados no fim daquela noite com as pizzas que selaram a paz entre as partes então discordantes.

É curioso (embora não surpreendente) que a expressão tenha se originado no contexto do futebol. Pois é justamente dele que pretendo falar hoje.

Aquelas pessoas na pizzaria eram os jogadores do Leicester, equipe de futebol que surpreendeu a todos e se sagrou campeã da Premier League inglesa 2015/2016, contrariando todos os prognósticos.

No início do campeonato, as casas de apostas de Londres consideravam mais provável o Elvis Presley estar vivo, a Kim Kardashian virar presidente dos EUA ou o Papa Francisco virar jogador de futebol do que o Leicester ser campeão (veja a notícia aqui). Imaginem o prejuízo! Chega-se até a dizer que esse é o maior feito da história do futebol (veja a análise de Gian Oddi, no site da ESPN).

O técnico da equipe, o italiano Claudio Ranieri, escreveu um depoimento semanas antes do time ser campeão na The Players’ Tribune (compartilhei uma tradução aqui). Nele, Ranieri conta o episódio da pizza e destaca como acredita que foi ali o momento em que o Leicester arrancou para o título. Ele havia prometido pagar uma pizza aos jogadores caso conseguissem terminar o jogo seguinte sem levar gols (a chamada clean sheet pelos ingleses). Aconteceu. E a surpresa foi que os jogadores tiveram que fazer sua própria pizza.

Alguns consultores poderiam dizer que essa foi uma atividade de team bulding. Pode ser. Mas não parece ter sido tão premeditado. Ou podia mesmo ser só uma pizza para celebrar o feito para um time que tinha fortes perspectivas de ser rebaixado.

A meta daquele time era simplesmente escapar do rebaixamento. E acabaram campeões!

Obviamente, não dá para resumir o feito a aspectos de gestão somente. Como em tudo, multiplos fatores pesaram: da incompetência de adversários ricos e poderosos com elencos muito mais fortes à competência do Leicester, passando é claro, pela sempre subestimada sorte e, por que não, pela pizza de Ranieri e seus comandados.

Mas vamos olhar para os aspectos de gestão. E a primeira questão que emerge é se o técnico de futebol pode (ou deve) ser considerado um gestor. No meu entendimento, obviamente que sim.

Ele é responsável por uma equipe e muito do que ele faz nada mais é do que a tão falada gestão de pessoas. Alguns podem até considerar esse termo uma redundância, pois a essência da gerência, como dirá qualquer guia de “MBA”, é conseguir fazer as coisas por meio de outras pessoas – é até possível se pensar em gerir coisas ou bichos, como papéis ou uma granja, mas é inevitável ter que lidar com pessoas no meio do caminho.

É muito comum, em administração, se dizer que o importante é definir uma meta, planejar de acordo, executar e, ao se comparar a execução com o plano, tomar as medidas corretivas necessárias (das ações ou do plano) para perseguir a meta. E a meta do clube era de míseros 40 pontos para escapar do rebaixamento (e o time atingiu 80!).

Não tem como não olhar para esse feito e não pensar naquilo que acontece com equipes que começam a dar certo – e isso não é só no esporte. Parece que num dado momento, a equipe tem um estalo e começa a desempenhar mais do que poderia. É a chamada sinergia: o todo é maior que a soma das partes. Todos se envolvem, as decisões do líder funcionam, os resultados vêm, a disposição aumenta, as pessoas se dedicam mais e mais… Com o Leicester parece que foi isso que aconteceu.

Pela falta desse estalo, já vimos muitas equipes consideradas brilhantes (ao menos em seus valores individuais) fracassarem – novamente, isso não é só no esporte, mas o esporte sempre traz percepções valiosas para a gestão, pois o impacto das medidas, muitas vezes, acontece num horizonte de tempo mais curto do que no mundo corporativo.

O executivo espanhol Leo Farache, publicou um livro sobre os dez pecados capitais do chefe, em 2008. Chefe, como todos sabem, é diferente do líder (assunto para outro post). Um aspecto que sempre está presente nas equipes que dão certo é a liderança, esse conceito um pouco nebuloso e de difícil definição, mas que cuja ausência é rapidamente percebida por todos. De qualquer forma, aqui vai o resumo dos dez pecados capitais do chefe, na versão trazida por Juan Carlos Cubeiro e Leonor Gallardo no livro Mourinho versus Guardiola: dois métodos para um mesmo objetivo (um livro escrito justamente para trazer insights da profissão de técnico para a gestão):

  1. O chefe não decide, não manda
  2. O chefe manda, mas não lidera
  3. O chefe é um prepotente (o que, muitas vezes, coincide com o chefe não é muito educado, muito humano nem muito honrado)
  4. O chefe ouve, mas não escuta
  5. O chefe perde o controle
  6. O chefe é resultadista (põe o resultado à frente da virtude)
  7. O chefe não despede os funcionários ou gestores prejudiciais
  8. O chefe não pensa primeiro nos clientes
  9. O chefe tem medo. Ou o chefe divide (… e perderá)
  10. O chefe é injusto

Agora pense nas equipes em que você esteve e que deram certo (e também nas que não deram). Muito provavelmente esses aspectos estavam ausentes (ou presentes). Se você ler com atenção a carta de Claudio Ranieri, verá que ele dá indícios de ter driblado todos os dez pecados capitais. Nesse caso, estabelecem-se condições necessárias, mas, obviamente, não suficientes para a equipe ser vencedora. Lembre-se dos múltiplos fatores.

No mesmo livro (Mourinho versus Guardiola), mais adiante, os autores resumem os Dez Mandamentos de Mourinho (técnico vencedor que dispensa apresentações):

  1. Os jogadores não são as estrelas. A única estrela é a equipe. O compromisso tem de ser total. A fraternidade e as boas vibrações, fundamentais.
  2. A culpa é do treinador. A responsabilidade é de todos. Mourinho reúne em si toda a pressão, mas não hesita em apontar os erros depois dos jugos, inclusive em público.
  3. É terminantemente proibido excluir-se. Quem não treinar no duro não joga.
  4. A pontualidade é sagrada. E pode custar a convocação para um jogo. O compromisso com o grupo é absoluto.
  5. O hotel é como um bunker. Não permite a presença de adeptos à procura de fotografias com os jogadores nem autógrafos.
  6. Nos quartos só podem beber água. É um doente das dietas e quer ter sob controle tudo o que os jogadores ingerem.
  7. Os celulares são proibidos. E também não podem receber visitas enquanto estiverem concentrados.
  8. São todos igualmente importantes. Por isso reúne-se individualmente durante dez minutos com cada um deles antes do jogo.
  9. Cada jogador recebe um DVD personalizado com as características do adversário que vai enfrentar no seu raio de ação. Controla todos os pormenores.
  10. A equipe trabalha arduamente para ganhar jogos. Por isso brinda-os com jornadas de oito horas de treino de manhã e à tarde.

Embora José Mourinho não esteja tão em alta, é interessante trazer suas percepções (como ele mesmo diz, “a vitória está acima de todas as coisas”), pois sua ideia de futebol está em alta atualmente, até para justificar o título do Leicester e a classificação do Atlético de Madrid à final da Champions League, que eliminou Barcelona e Bayern de Munique, dois times que praticam outra ideia de futebol, a escola cujo representante máximo atualmente é Pep Guardiola.

De Guardiola, os insights para a gestão vêm de sua distinção de três conceitos: a ideia, o idioma e as pessoas.

Como descrito no livro Guardiola Confidencial, de Martí Perarnau, “a ideia é a essência de um time e de seu técnico. A síntese e a vocação”. Para Guardiola, “a ideia é ter a bola”.

O segundo conceito, o idioma, é definido como “o método que permitirá expressar a ideia no campo de jogo. É o conjunto de sistemas, atividades e princípios que, através de treinamento, devem ser empregados na implementação da ideia”.

E, por fim, vêm as pessoas, pois “por mais elaborados que sejam, ideia e idioma não poderão ser interpretados corretamente se os jogadores não estiverem dispostos a cooperar”. Bingo! É aqui que as pontas começam a se unir. Vale para o Guardiola e para o Mourinho, vale para o Claudio Ranieri e vale para a sua equipe.

Sem as pessoas não se faz nada. E é por isso que não gosto da ideia de quem trata pessoas como ‘recursos’. Eu mesmo já fui ‘recurso’ em muitos projetos, mas me recuso a pensar nas pessoas como recursos quando sou eu o encarregado da gestão. E aí o futebol (e o esporte em geral) ajudam a trazer mais alguns insights para a gestão. Alguns podem querer pensar em jogador como os recursos que o técnico têm à sua disposição para aplicar na montagem do tipo. Mas eu prefiro pensar que o técnico tem os recursos do clube (estrutura física, disponibilidade de dinheiro para contratações etc) e conta com pessoas. Essas pessoas, ou os jogadores, é que têm os recursos. Não se diz que um jogador tem excelentes (ou poucos) recursos técnicos?

Outro aspecto curioso é que estão implícitos nas ideias desses dois grandes técnicos de futebol, colocados em contraposição no livro de  Cubeiro e Gallardo, conceitos que foram definidos e discutidos há exatamente um século. Estamos no centenário de Henri Fayol, que teve para a gestão, dadas as proporções, importância parecida com a de Isaac Newton para a Física e de Bach para a música. Foi em sua obra de 1916 (muitas vezes considerada sacal pelos estudantes de primeiro ano de administração, mas que considero muito interessante de ser lida), Administração Geral e Industrial, que ele definiu administração como “prever, organizar, coordenar, comandar e controlar”. Ou seja, ter uma ideia e colocá-la em prática por meio do idioma e das pessoas.

Só um parênteses: não compreendo de onde alguns estudantes (e até professores) de administração tiraram a ideia de que esses componentes descritos na definição de Fayol acontecem sequencialmente e de forma estanque. É provavelmente um pensamento de quem nunca administrou nada na prática, ao contrário de Fayol. Em todo seu livro fica nítido como essas atividades acontecem de forma simultânea. Isto é, o gestor planeja uma atividade enquanto controla algo que acontece no chão de fábrica, ao mesmo tempo que coordena as ações de algo que está acontecendo naquele momento etc e tal. Não cabe aqui alongar essa parte.

Se, por exemplo, você comparar os 10 mandamentos de Mourinho com os 14 princípios enunciados por Fayol (não vou colocar mais uma lista aqui, mas você pode vê-la em qualquer lugar, até mesmo na Wikipedia), perceberá que as ideias por trás são as mesmas.

Alguns anos antes dos escritos de Fayol, em 1889, o rei Umberto I e a rainha Margherita, que passeavam por Nápoles, provaram uma pizza com as cores da bandeira da Itália, feita em sua homenagem. Nesse meio tempo, o futebol chegava ao Brasil (1895) e se consolidava no mundo como um esporte em expansão (a Fifa é de 1904).

Embora com 100 anos de idade e pautadas com uma ênfase forte em hierarquia, centralização e especialização, e, principalmente se levarmos em conta o contexto em que foram escritas, é perceptível que, assim como a pizza Margherita e o futebol, as ideias de Fayol continuam atuais.

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A origem do mal (do dinheiro mal gasto)

Quando eu li aquela notícia, ainda em fevereiro, do incêndio no viaduto Santo Amaro, que passa sobre a avenida dos Bandeirantes, um dos mais importantes corredores viários da cidade de São Paulo, um detalhe me chamou a atenção.

Para quem não lembra, o ocorrido foi uma colisão entre dois caminhões: um caminhão-tanque carregado (imaginem o estrago!), que ia cruzar a avenida, e um bi-trem que transportava açúcar  e não freou a tempo de evitar a colisão – os mais espirituosos ainda vão querer saber se o combustível era álcool para dizer que só faltou o carregamento de limão. Houve um incêndio tremendo e após o estrago ainda se cogitou demolir o viaduto.

Mas a questão para a qual eu queria chamar atenção não é o acidente, nem a eventual demolição do viaduto, muito menos as consequências que duram até hoje. O detalhe de que falei acima está na fala do motorista do bi-trem que não freou no semáforo, que estaria vermelho para ele, segundo os relatos.

Supostamente, ele foi desviar de um carro que “invadiu” a sua faixa e na sua declaração à imprensa, o motorista disse o seguinte: “A moça tentou invadir a minha faixa, eu sai desviei dela, aí deu vermelho [semáforo fechado], o cara já saiu e eu bati nele. Já bateu, já pegou fogo. A minha sorte é que a porta abriu, ai eu peguei e sai”.

O grifo na citação é meu. Como assim “aí deu vermelho”? De repente, o semáforo estava verde e ficou vermelho?

Até onde se sabe, esse ‘complexo’ sistema de sinalização de trânsito tem uma convenção. Normalmente, antes do vermelho – que indica que os motoristas devem parar atrás da linha branca transversal à faixa de rolagem – acende por alguns segundos uma luz amarela, que significa que o vermelho está para chegar (e, supostamente, se tudo estiver bem configurado, sua duração corresponde ao tempo  que o veículo que estiver na velocidade da via leva para percorrer aquela parte contínua da faixa branca que delimita as faixas de rolagem – ou seja, se você estiver na parte contínua da faixa quando aparecer a luz amarela, terá tempo de passar antes de o sinal virar vermelho).

Ok. E daí? O que isso tem a ver com gestão?

Eu queria aproveitar essa ideia do “susto” de quando “aí deu vermelho” para comentar a notícia sobre o estudo do Banco Credit Suisse. Diz a manchete da Folha: “Brasil patina porque gasta mal, indica estudo“. Ainda não li o estudo original, mas, de qualquer forma, vale a pena dar uma olhada na notícia com atenção.

A lógica é a seguinte: um gasto governamental bem feito (eficiente ou com qualidade) tende a ser portador do crescimento econômico. Essa ideia não é nova. Existem estudos de mais de uma década mostrando esse fato para países da OCDE (vou deixar as referências no fim para quem tiver um interesse mais ‘acadêmico’ no tema). Dependendo do quanto o governo gasta, em relação do Produto Interno Bruto, o PIB, é esperado um melhor desempenho do setor público. Obviamente, se o gasto for mal feito, o resultado será pífio. Ou seja, não se trata apenas de uma questão do quanto se gasta, mas da qualidade desse gasto. Esse inclusive tem sido um tema recorrente em projetos de consultoria para o setor público em que estive envolvido. Já existe uma preocupação em se gastar melhor, mas a prática ainda está muito distante dessa percepção.

Mas adivinhe só, caro leitor, onde está origem desse mal? Boa parte da explicação está nas práticas de gestão adotadas.

Imagine que você tenha que fazer um planejamento de quanto pretende gastar no ano seguinte. Mais do que isso, quais são seus objetivos e que investimentos pretende fazer para alcançá-los nos próximos quatro anos – ou perspectivas com prazos ainda maiores, pensando no que você quer para sua vida muitos anos adiante. Quanto tempo você gastaria pensando nisso? Que cuidado você tomaria? Imagino que daria uma atenção muito grande, afinal, está pensando no seu futuro.

E como acontece no setor público do nosso país? (E tem muitas empresas que copiam esse “modelo”). Isso mesmo. “Aí deu vermelho”.

Quando chega o prazo da entrega dos planos, os gestores saem correndo e preenchem qualquer coisa. Muitas vezes utilizam o plano do ano anterior (que não foi executado!) e atualizam os valores. Fim de papo. Formalidade cumprida. Agora ele pode voltar a apagar os incêndios que tomam conta de seu tempo todos os dias – até o próximo prazo fatal – como se não tivessem nenhuma relação com a atitude adotada para resolver o “problema” do cumprimento do prazo da entrega do plano.

E como o plano foi uma mera formalidade, o gestor só vai lembrar dele no próximo ano. Nem mesmo quando for cobrado, em setembro do ano seguinte, da execução orçamentária (que está em pífios 30 ou 40% do previsto), ele vai correr para o plano dele – só se o chefe pedir, é claro. Como já falei aqui, começa a correria para gastar os recursos previstos (naquele plano) e os gastos (afinal, é necessário cumprir outra formalidade) saem de qualquer jeito, em esforços hercúleos contra o departamento jurídico da instituição. Nesse momento, não parece que as pessoas da organização estão trabalhando em busca dos mesmos objetivos e estabelece-se uma guerra entre os departamentos.

Esse dinheiro mal empregado me lembra um princípio dos denominados números axiológicos, um “conceito” que desenvolvi com meu amigo astrônomo e professor Walmir Cardoso. A ideia é que um número pode ser melhor ou pior do que outro, dependendo da situação. No contexto escolar, por exemplo, um 6 pode ser melhor que um 8, embora seja indiscutível que 8 é maior do que 6. Caso a nota 6 represente a aprovação em matemática, ela é mais valiosa que o 8, que pode ter sido obtido em uma prova fácil de outra matéria em que a média para aprovação já foi alcançada.

No gasto público é a mesma coisa. Um real gasto pode ser melhor ou pior, dependendo da gestão. O real é o mesmo, mas o planejamento prévio e sua aplicação final fazem toda a diferença.

Enquanto os gestores (públicos e privados, inclusive aqueles que confuntem a vida pública com a privada) não compreenderem seu papel – para ficar só na execução orçamentária (e num trabalho que desenvolvemos para a Unidade Central de Recursos Humanos do Estado de São Paulo até mesmo um jogo digital, um game, foi utilizado a fim de tentar sensibilizar os gestores de seus papeis e responsabilidades (aliás, esse trabalho foi tão interessante que acabou inspirando o meu trabalho de doutorado (chega de parênteses, pois já nem dá mais para acompanhar!)))… Então, como eu dizia, enquanto os gestores não compreenderem seu papel e suas responsabilidades, vamos continuar patinando.

Não dá para levar adiante a gestão “aí deu vermelho”. É preciso se dar conta de que planejamento e execução do plano (que não precisa – e nem deve – ser rígido) são o início de tudo. Concomitantemente entram as questões sobre como lidar com pessoas. Afinal, todo e qualquer resultado de uma organização é obtido por elas. Mas é preciso criar um todo coerente – e são exatamente as pessoas que vão fazer isso. Aquilo que será cobrado vai induzir o comportamento. Como diz o físico israelense, Eliyahu Goldratt, que se notabilizou como criador da Teoria das Restrições, descrita no seu best seller ‘A Meta’, “diga-me como me medes, que te direi como me comportarei”. E adiciona: “Se me medires de uma forma ilógica, não reclame de comportamento ilógico” (essa frase é do livro, também muito bom, ‘A Síndrome do Palheiro’).

Não estou fazendo apologia à metrificação da vida – longe disso (e não vou entrar nessa polêmica hoje). Mas ressalto que essa lógica continua valendo até mesmo quando não se tem métrica alguma – ou para quando se tem e não se deveria ter.

Se continuarmos cobrando o mero cumprimento das formalidades, como o da entrega do plano, mais do que seu conteúdo, e como o da execução do orçamento quantitativamente, em dinheiro apenas, e não pelo seu impacto, continuaremos jogando dinheiro público na privada. Quando um governante aparece na mídia citando de peito estufado os números de quanto sua gestão gastou nisso ou naquilo, temos que prontamente confrontá-lo sobre a qualidade desse gasto. Afinal, um milhão de reais pode ser melhor ou pior que outro milhão, como na “teoria” dos números axiológicos.

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A gestão incompetente ou intempestiva está fadada a continuar “dando vermelho”, mas nesse caso, dá o vermelho do mau desempenho ou das contas no negativo. O que nos falta é “dar o vermelho” para esses gestores, aquele do cartão, o de mandar para o chuveiro – ou para a privada – mais cedo, como no futebol.

 

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Referências dos estudos antigos de que falei:

  • AFONSO, A.; WERNER, E.; SCHUKNECHT, L.; MICHAEL, T.; Quality of Public Finance and Growth, European Central Bank, Working Paper Series Nº 438, 2005
  • AFONSO, A.; SCHUKNECHT, L.; TANZI, V.; Public Sector Efficiency: An International Comparison, European Central Bank, Working Paper Series Nº 242, 2003
  • CHEMLI, S. B. R.; NETICHA, M. H. B.; Efficience du financement des services publiques et croissance économique dans les Pays em développement: Analyse en coupe transversale, Journées Scientifiques du Reseau “Analyse Economique et Développement”, Paris, Setembro, 2006

 

P.S.: Acabei de me dar conta. Não, não estou fazendo nenhuma alusão ao impeachment presidencial ao citar o cartão vermelho. Temos que deixar de nos iludir e achar que tudo compete ao governante máximo. A gestão ineficiente permeia todos os níveis em todos os setores – esses é que têm que ir para casa mais cedo, nem que seja para estudar.

E o filme se repete

Isso aconteceu há 10 anos. Em uma das minhas primeiras visitas ao Planetário do Carmo, em abril de 2006, logo após ter sido nomeado diretor dos planetários de São Paulo, um dos funcionários que ali trabalhavam me alertou: “espere a época das chuvas começar e você vai ver o que acontece aqui”. Não fazia muito sentido, pois o prédio era novo (inaugurado em novembro de 2005) e o atendimento ao público ia de vento em popa.

Mas uma inspeção um pouco mais cuidadosa começou a mostrar que o alerta poderia ser verdadeiro. O acabamento do prédio tinha algumas partes questionáveis, embora outras extremamente desnecessárias (não vem ao caso citar detalhes). E no fim daquele ano a época das chuvas chegou.

Ao contar, parece inacreditável. Mas eu estava lá e filmei o que acontecia quando chovia forte: a água entrava por todos os lados do prédio, inclusive pelo de cima. A laje parecia inexistente em algumas salas, em especial (e perigosamente), na sala ‘técnica’, que continha equipamentos importantes para o funcionamento do projetor, a alma de um planetário.

Finalmente tínhamos evidências para comprovar aquilo que constatamos meses antes e podíamos mostrar ao pessoal do gabinete que o prédio não tinha condições de funcionar, sem antes passar por um laudo técnico e reformas estruturais. Em fevereiro de 2007 o Planetário do Carmo foi fechado e iniciou-se um longo processo que envolvia desde a contratação de uma empresa especializada em laudos técnicos até a execução das reformas propriamente ditas.

Por que estou lembrando de algo tão antigo? (e que provavelmente não se resolveu por completo ainda). Porque esse é o mesmo filme, dadas as proporções, da notícia do último feriado da ciclovia Tim Maia, no Rio de Janeiro. Felizmente, no meu caso, a interdição foi antes de piores consequências. No caso da ciclovia foi tudo mais repentino. Uma onda gigante destruiu parte da bela ciclovia e, lamentavelmente, vidas se perderam.

Fazendo um rápido exercício de memória, sem apelar para o Google, lembro-me de casos como esses: (1) o Tunel Fernando Vieira de Melo, que liga as avenidas Eusébio Matoso e Rebouças, em São Paulo, foi inaugurado e teve que ser fechado três meses depois por problemas de alagamento, decorrentes da má estrutura da obra; (2) Algo parecido ocorreu com o corredor de ônibus da Av. Nova de Julho, também em São Paulo: crateras se abriram na via em momentos diferentes, supostamente por causa da chuva, mas não dá para negar que a origem está em má execução (ou fiscalização) da obra; (3) O Estádio do Engenhão no Rio teve que ser interditado por problemas estruturais, poucos anos depois de sua inauguração.

Alguns podem se lembrar também do fatídico caso da cratera na Linha 4 do metrô de São Paulo, em Pinheiros. A catástrofe nesse episódio foi ainda maior, mas diferentemente dos exemplos que enumerei acima, a obra estava em andamento e ainda não tinha sido inaugurada.

O que há de comum entre todos esses casos (e tantos outros que ocorrem quase que diariamente em todos os cantos do país – fique à vontade para ajudar a recuperar essa triste memória e deixe um comentário abaixo) parece um filme que se repete: problemas na execução da obra; problemas no projeto; problemas na fiscalização; problemas na contratação; adititivos de contrato; obras que custam 30%, 50%, 100%, 200% a mais que o previsto; prazo de entrega dilatado (e às vezes apressado para cumprir uma agenda de campanha eleitoral); e, em alguns casos, relações escusas entre contratante e contratados.

É verdade que o local e a obra variam, mas o roteiro é o mesmo. Quando leio essas notícias, sinto-me como o Bill Murray, personagem principal daquele excelente filme O Feitiço do Tempo. Ele sempre acorda no mesmo dia, com a esperança de que a marmota não volte para a toca, mas ela volta. Os acontecimentos até variam ao longo do dia, mas na essência tudo se repete. De novo, de novo e de novo…

Fica evidente que há problemas de gestão. Mas não apenas causados por maus gestores. Eles estão em toda parte, é verdade. Mas, novamente, há um problema generalizado no sistema. Isso começa na lei de licitações (a famigerada 8666/93) e passa pela forma como é feita a fiscalização, em como são aprovados os projetos, nas exigências sobre as contratadas e, também, pela pressa na entrega das obras quando se aproxima algum prazo importante (como eleições). Contudo, a mesma pressa não existe quando são consumidos meses e mais meses na elaboração do edital de contratação, nas idas e vindas dos pré-projetos ou estudos de viabilidade.

Da mesma maneira, vemos problemas e vícios em diversos sistemas por todo o país: o político, o de saúde, o tributário e por aí vai. Insisto que uma das origens desse quadro é a incapacidadade dos nossos gestores (nos setores público e privado) de enxergar as questões sistemicamente (como falei aqui). De não querer resolver os problemas pensando na próxima eleição, na promoção ou em fazer o filme com a alta direção. O foco excessivo no curto prazo, sacrifica a longo prazo. Hoje vivemos o longo prazo de más decisões no passado. A grande preocupação é que continuamos a tomar más decisões – e também no curto prazo, ao que parece.

Existe uma questão central, independente da capacidade intelectual dos gestores nas empresas e nos órgãos públicos. Há muita gente tomando decisões importantes sentada confortavelmente em suas salas e poucos realmente dispostos a levantar seus traseiros de suas cadeiras, ficar embaixo de chuva ou de sol escaldante para ver como as coisas de fato funcionam no mundo real.

Do alto de seus gabinetes e escritórios, esses gestores esquecem-se da realidade. Se os fatos contrariam suas convicções, eles pressionam para que os “fatos” mudem. A pesquisa de viabilidade ou de mercado diz uma coisa que vai contra o que eles querem fazer? Ordenam (no pior sentido que isso pode ter para uma gestão) que a pesquisa seja refeita até o resultado estar de acordo com o que querem – lembra aquela história de “torturar os dados até que eles confessem “.

Ir para a rua ou para o chão de fábrica é essencial. Alguns dizem que são mais aptos a ver a floresta e não as árvores, em alusão a ideia de visão estratégica versus operacional (assunto para outro post futuro). Entretanto, como costuma dizer Henry Mintzberg, esquecem-se que é debaixo das folhas que se encontram as oportunidades.

Para entender o sistema floresta, é preciso conhecer com profundidade como as plantas respiram e fazem fotossíntese, saber como o xilema e o floema circulam em seus caules, como absorvem nutrientes do solo. Não pode ter preguiça! Na sala com ar condicionado tudo parece mais fácil. Mas, no fim das contas, decidir de lá torna tudo mais difícil.

Ao ver esses fatos se repetindo, não tem como não lembrar da definição de insanidade: fazer sempre as mesmas coisas e esperar resultados diferentes. Aquilo que precisa ser mudado deve servir de estímulo (e não de desculpa, já que é muita coisa para fazer) para que o filme mude. Que tal começar levantando a bunda da cadeira hoje?

 

 

 

 

A incompetência precede a corrupção

Em um curso que fiz na Universidade de Estocolmo, faz alguns anos, o professor, que tinha opiniões um tanto excêntricas sobre alguns conceitos clássicos do marketing B2B, fez um comentário inusitado sobre seu país de origem. Foi algo como: “Aqui na Suécia as coisas são assim: se os políticos não ‘andarem na linha’, se não defenderem os interesses dos contribuintes, nós vamos para a rua e quebramos tudo!”.

Vários alunos (alguns de forma indignada), que vinham de diversas partes do mundo, questionaram e trouxeram evidências de que não era assim, de que o povo sueco era muito educado e civilizado. Os parlamentares suecos são mundialmente famosos por não ter mordomias (veja o vídeo) e não se tinham notícias de barbáries como a da fala dele acontecendo há muito tempo naquele país.

A resposta dele não podia ser mais simples: “viu como funciona?”.

Isso me faz lembrar de um episódio da minha infância (devia ter uns 8 ou 10 anos de idade). Na praia, no Guarujá ou em Santos, não lembro exatamente, com a família (algo que era bem eventual), vejo passar um daqueles aviõezinhos à hélice sobre o mar, carregando uma faixa com um anúncio qualquer. Meu pai se vira para mim em tom de brincadeira e fala: “esses aviões ficam passando aí para espantar tubarões”. E eu retruquei: “Mas aqui não tem tubarão!”. E meu pai bem-humoradamente respondeu: “viu como funciona?”.

Embora a resposta seja a mesma, as duas histórias diferem drasticamente. A incompreensão da relação de causa e efeito pode levar a situações esdrúxulas, como naquele episódio dos Simpsons em que, em razão do aparecimento isolado de um urso na cidade, implementa-se uma patrulha anti-ursos para livrar Springfield daquela ‘ameaça’. Melhor eu parar de contar. Veja aqui o início do episódio.

Essa é uma constante. Quantos exemplos não vemos por aí? A diferença está na profundidade com que o problema é analisado para o entendimento da relação de causa e efeito. O fato aparentemente isolado pode evidenciar um problema grave no sistema, exigindo uma solução duradoura e eficaz; ou pode ser apenas um caso isolado e, assim, deve ser tratado como ele é: um caso isolado.

Incêndio catastrófico numa boate do sul do país? Caso isolado ou sintoma de um problema mais grave no sistema de autorizações para funcionamento dos estabelecimentos e no controle do acesso a eles? Forças-tarefa são realizadas para vistoriar outros N estabelecimentos – similares ou não.

Briga de torcida fora do estádio em São Paulo? Impõe-se torcida única em jogos de times com grandes torcidas (os famosos ‘clássicos’). Nem sempre é evidente distinguir a causa do efeito, o sintoma do problema. E nesse caso, nada é preciso especular sobre ser ou não um caso isolado. O problema é sistêmico – e, mais do que isso, reflexo de outros problemas estruturais na nossa sociedade. A diferença fundamental reside no tipo de solução que se dá quando se observa um sintoma.

Está bem. Mas o que tudo isso tem a ver com o título do post?

Feito o adendo, voltemos para o caso sueco. Esse país, ao lado de seus vizinhos escandinavos, é sempre apontado como um exemplo de sociedade que funciona. Os baixos índices de corrupção e a forma espartana de vida dos parlamentares são exemplos de aplicação eficiente dos recursos. Constitui um contraexemplo ao discurso tradicional do “aqui não se faz nada por que o dinheiro não chega onde tem que chegar”. Será?

Esse é o exemplo de uma idea de que a corrupção precede a incompetência. Ou seja, como não chega o dinheiro (porque ele fica no caminho, em bolsos indevidos, nas mãos dos corruptos), não conseguimos fazer nada. Não temos recursos, não é possível gerenciar nada. A gestão é péssima. E assim vai. Na Suécia, como são honestos, os recursos chegam e eles podem gerenciar de forma eficiente e eficaz.

A minha proposta, como sempre, é inverter o raciocínio. Quanto se desvia em esquemas de corrupção? Não estou falando do impacto sobre a economia (já se falou que o escândalo da Petrobras gira em torno de algo entre 0,5% e 2,5% do PIB). Uma corrupção gritante seria de quanto? Algo como 15 ou 20% de um orçamento desviado? Parece uma suposição razoável (e irrealisticamente elevada!). Mas e os outros 80%?

São os 80% que não chegam por causa dos 20% desviados ou são os 20% desviados por causa dos 80% que não chegam onde deveriam? O senso comum vai na primeira hipótese: o dinheiro não chega onde tem que chegar por que fica no caminho. É verdade. Mas são os 80% que se perdem, resultado da incompetência da gestão. A realidade e a experiência corroboram a segunda visão.

Vamos ilustrar com uma parábola simples.

Imaginemos uma antiga civilização que quer construir pirâmides para tentar atingir o céu e venerar seus deuses. Imginemos também que essas pirâmides são feitas de paralelepípedos gigantescos, enormes blocos de pedra, extraídos e esculpidos em alguma pedreira longínqua. Como são muito valiosos, alguns espertinhos podem achar interessante “desviá-los” para a cidade vizinha (onde também se quer construir pirâmides) e ganhar algum dinheiro (ou o que seja) com a operação.

Se o desvio for de 20% dos blocos, alguém notará e fará alguma coisa para coibir esse tipo de corrupção. No entanto, se a incompetência for elevada, digamos, com muitas quedas e quebras de blocos no caminho, com muitos problemas de escultura no formato certo, levando a uma inutilização considerável dos blocos na hora de sua instalação, aí sim pode ser que os 20% desviados passem batidos. Se de cada 100 blocos, 50 ou 60 se quebrarem no caminho, quem vai olhar para 10 ou 20 que nem chegaram a ser colocados no sistema?

Ou seja, se o faraó (ou quem quer que seja o responsável pelo projeto) melhorar a sua gestão, em pouco tempo, ao resolver os problemas de transporte, escultura e instalação dos blocos da pirâmide, vai perceber que há desvio. E se o desvio for exorbitante como no exemplo, mais fácil ainda será de identificá-lo e de tomar medidas para evitá-lo.

Esse é o ponto em que eu queria chegar: a gestão (como sempre). Uma má gestão (a incompetência) abre as portas para a corrupção. Portanto, elevados índices de desvios precisam, necessariamente, ser precedidos por uma dose elevada de incompetência.

É claro que você poderia pensar que é possível ser muito competente e corrupto. Para isso, precisaríamos entender o que é ser competente. Até para manter elevados níveis de corrupção é preciso uma gestão eficaz (que o diga aquela grande construtora e o seu departamento responsável pelas propinas). Mas é muito mais difícil ser corrupto dentro de um sistema competente, que funciona. E essa é uma discussão para outro post.

A questão central é que, ao melhorar a gestão (criar mecanismos eficientes de planejamento, execução e controle), aplicam-se de forma eficiente os recursos disponíveis (aqueles 80% não desviados) e, em muito pouco tempo, dá-se falta dos outros 20%.

Já trabalhei dentro da administração municipal de São Paulo e era muito comum chegarmos a setembro ou outubro com vários departamentos em diversas secretarias e subprefeituras tendo executado apenas 40% de seu orçamento anual. Que planejamento é esse? Que gestão é essa? Onde estão os gargalos? Ou existe alguma justificativa razoável para se correr nos três últimos meses do ano para uma gastança desmesurada, a fim de executar o orçamento daquele ano? A essa altura, tudo vira urgente. Gere-se mal, gasta-se mal. Problemas não são resolvidos. Sobram recursos para atacar os sintomas.

Melhorar a gestão é o primeiro passo. E não estou falando só da área pública. Quem acompanha os outros posts do A Tal da Gestão sabe que sou igualmente crítico, não importa o tipo de figura jurídica ou o porte da organização. Gestão incompetente é aquela que ataca os problemas da forma errada, sem compreendê-los a fundo (criando uma estrutura – eficaz, mas cara – para prevenir ataques de ursos, como no episódio dos Simpsons). A gestão competente sabe olhar para os lugares certos e resolver os problemas de forma sistêmica. E para uma gestão competente é necessário ter gente competente (gestores e funcionários).

Mas aí pergunto: de onde vai vir a pressão para melhorar a gestão por aqui?  E de onde virão os gestores competentes? Da Suécia?

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X-ineficiência

Ao escrever o post anterior, sobre uma ida ao hospital, acabei me lembrando de uma outra situação. Dessa vez não no hospital propriamente, mas como consequência de estar como acompanhante em uma cirurgia (coisa simples, não vem ao caso aqui).

Lá pelas tantas, eu precisei comprar algo e, como era um domingo, o único lugar possível era o Shopping Paulista, que fica do lado do Hospital Alemão Oswaldo Cruz – que é excelente, diga-se de passagem.

Como já eram 11h30, resolvi aproveitar e almoçar (pois é, dependendo do seu plano de saúde, a refeição do acompanhante não é coberta – paciência, mas sem grandes dramas). A alternativa em situações como essas acaba sendo a boa e velha junk food. Pois é. Aquela que é rica em calorias e de baixa qualidade nutritiva. A ‘excelência’ nesse tipo de refeição mora em alguns lugares. Dois dos mais famosos são o McDonald’s e o Burger King.

Quem conhece o Shopping Paulista sabe que os dois se localizam em posições simétricas, no piso Maestro Cardim (que não é o da praça de alimentação) e em boa posição para quem entrou apenas para comprar um item na farmácia e está com pressa para voltar seja para onde for. Para ser sincero, não vejo muita diferença entre um e outro. Gasta-se o mesmo, come-se mal igual. Então, tanto fazia para mim.

Assim, ao sair da farmácia, já às 11h40, avistei o Burger King e lá fui. Perguntei à funcionária se já podia pedir e ela confirmou que sim. E então fiquei parado no balcão esperando para fazer o pedido, enquanto ela limpava alguma coisa ali dentro da cozinha, me ignorando completamente.

Passados 3 ou 4 minutos, já havia um senhor atrás de mim formando a ‘fila’. Incomodado com a espera (não pelo tempo em si, mas pela falta de qualquer movimentação da atendente, que havia dito que já estavam abertos – e, também, como paulistano, devo ter a pressa correndo nas veias), resolvi confirmar: “você disse que eu já está funcionando – eu não posso pedir?”. E ela responde: “Ah! só daqui uns 20 minutos!”. Eu até ensaiei um “Mas você disse que…” e terminei com um resignado “tudo bem então, eu vou lá no McDonald’s”.

Até aí tudo bem. Não fui o primeiro e nem serei o último. Aliás, assim como eu desisti do Burger King para ir ao McDonald’s, deve haver pencas de pessoas que fazem o movimento contrário diariamente. Mas o que me espanta é a postura do “tanto faz, tanto fez” que as pessoas ali tiveram. Não! Não pode. Tem que doer! Eles estão perdendo um cliente para o seu principal concorrente. Não pode ser tanto faz, tanto fez. A funcionária tinha que se incomodar e fazer alguma coisa. No mínimo, pedir desculpas pela informação desencontrada e pela minha espera inútil ali. É aquele velho problema de não conectar o lé com o cré de que falei em outro post.

Da mesma forma, o vendedor da loja de celulares não se importa em prestar um bom atendimento que não vá lhe render uma boa venda, já que ganha comissão proporcional ao  valor vendido. Mesmo lhe doendo no bolso quando não vende, parece não se importar (“tanto faz, tanto fez”) que o cliente saia da loja e vá para a loja da outra operadora. Repito. Não pode. Tem que doer!

É como disse o Clovis de Barros Filho (por outro motivo): tem que ter brio!. No caso do vídeo dele, que você pode conferir abaixo, a indignação vem do fato de algumas pessoas aceitarem, sem brio, que não vão entender um texto que leem. Já a minha vem da falta de brio de a pessoa simplesmente não querer entender que aquela venda perdida para o concorrente tem consequências, no mínimo, para ela mesma no longo prazo. Também tem a ver com uma falta de entendimento, a de não conseguir ‘ler’ o que o cliente precisa e o que deve ser feito para melhorar a eficiência. Faço minhas as palavras dele: “Tenha sangue! Reaja!”

 

Enfim, na mesma hora, o McDonald’s já estava atendendo (e eu nem era o primeiro da fila, como no Burger King – umas cinco pessoas já estavam comendo no salão). Rápida e eficientemente aprontaram um X-qualquer coisa que eu pedi e eu pude voltar para o hospital. Logo ao sair, noto aquele mesmo senhor que estava atrás de mim no Burger King fazendo seu pedido no caixa do McDonald’s.

Não quero comparar faturamento, lucro e sucesso das duas empresas aqui no Brasil. Nem fui atrás disso e não vem ao caso. Gosto apenas de olhar alguns detalhes reveladores, o que tenho feito desde então (embora eu tente evitar comer esse tipo ‘nutritivo’ de comida).

Sistematicamente, demoro mais no Burger King do que no McDonald’s. Sempre tenho a sensação que o primeiro é mais lento e mais ineficiente. Ambos têm fila nos shoppings (e muitas vezes estão lado a lado), mas no primeiro elas andam mais devagar, ou seja, menos pessoas são atendidas. Não deve ser à toa.

No Burger King, seu pedido só é encaminhado para a cozinha após finalizado e pago. No McDonald’s, enquanto você pede, alguém já recebe as informações (e não estou falando de sistema, estou falando de comunicação). Assim, no segundo parece que confiam em você, ou seja, sabem que você vai pagar, mesmo sem ainda ter finalizado o pedido. Assim, eles já podem  ganhar tempo passando as informações para a cozinha. No Burger King a desconfiança gera ineficiência (e já falei disso aqui).

Outro detalhe muito revelador é o formato do teclado virtual para o atendente digitar o CPF quando alguém pede a nota fiscal paulista. No McDonald’s é o tradicional teclado numérico, isto é, aquele com 3 fileiras de 3 números e com o zero por baixo, igual àquele em que você digita sua senha do cartão de crédito na hora de pagar. Ele existe por ser mais eficiente (qualquer pessoa que já tenha feito trabalhos de tabulação numérica pode confirmar isso). No Burger King, o teclado tem os número enfileirados em uma única linha, menos eficiente. Peça nota com CPF nas duas lojas e repare a diferença de tempo. Ela pode ser ridícula. Talvez alguns segundos. Mas, integre isso pelos milhares de pessoas que passam pelas lojas e tente imaginar o impacto na eficiência – e consequentemente no resultado das empresas.

Parecem bobagens, eu sei. Mas representam uma sutil diferença de mentalidade.

E não estou dizendo que o McDonald’s dá um banho de gestão no seu rival, pois tenho certeza que, se escarafunchar um pouco, não vão faltar exemplos de ineficiência gerencial também no ‘grande M amarelo’. Mas, pelo menos nessa ‘guerra’, pequenos detalhes indicam que eles podem estar à frente do seu rival, o ‘rei do hambúrguer’.

E aparentemente não é só aqui no Brasil. Vejam esse vídeo debochado do McDonald’s satirizando o Burger King na França:

 

O Burger King até respondeu à sátira, mas, para mim, apenas reforçou a ideia de menos eficiente que o rival. O intuito da resposta parece ser de mostrar que se come em um e não no outro a partir de uma escolha baseada em sabor. Não sei se funciona. Para ser justo, acho que prefiro um pouquinho o sabor do lanche do Burger King. Mas, quando quero hambúrguer bom de verdade, faço em casa ou então, se é para andar mais,  vou ao Frevo ou à Hamburgueria do Sujinho (e lá nem aceitam cartão!).

Mínimo necessário ou o melhor possível?

Essa madrugada precisei levar meu filho de quase dois anos ao hospital. Já está tudo bem, felizmente – era um problema de pronação dolorida (deslocamento do cotovelo), que já foi resolvido – em apenas 4 segundos pelo ortopedista do bom Hospital Santa Catarina. O difícil foi a espera de quase duas horas até o atendimento.

Chegamos por volta de 4h da madrugada. Não dava mais para esperar, pois o pequeno chorava muito e não conseguia dormir. Além de nós, outras duas crianças e seus pais na sala de espera.

Estávamos no fim de um plantão de uma madrugada? Ok. O hospital estava cheio? Não.

Então por que tanta demora? Se o procedimento era tão simples, como era o das outras crianças que esperaram tanto tempo, por que não chamá-los logo e resolver o problema?

Talvez, por isso, circule com tanto destaque uma lista de motivos feitas  por um estrangeiro que odiou viver no Brasil. No motivo de número 12, ele diz o seguinte:

“Brasileiros tornam tudo inconveniente e difícil. Nada é pensado para facilitar a vida do cliente. Além de terem uma alta tolerância com uma burocracia desnecessária e redundante.”

A menos que os médicos estejam mancomunados com o pessoal do estacionamento, interessados em aumentar a permanência dos pacientes para incrementar a receita desse estabelecimento (hipótese pouco provável, mas, infelizmente, plausível em nosso país), desconfio que a causa é que as pessoas muitas vezes trabalham no modo “mínimo necessário” em vez do “melhor possível”.

Isso me lembra a definição de mediocridade que vi o Mario Sergio Cortella enunciar em uma de suas palestras:

“Medíocre é aquele que, podendo fazer o melhor, se contenta com o possível”.

A impressão que dá é que o médico e outras pessoas da equipe (inclusive e principalmente o pessoal da papelada – que parece perder o senso da existência de seu trabalho) pensam: “ah, não é urgente, então podemos atender dentro do prazo de 1 ou 2 horas. Vamos usar esse tempo” (para mais um café? Para um cochilo? Ou para preencher uma papelada desnecessária?)

Isso me lembra o ‘conselho’ que um colega me deu, ainda nos tempos em que eu trabalhava na área de compras, “Cara, você tem 90 dias para colocar o pedido. Por que você vai se preocupar com a solicitação que chegou ontem?”. Por que era esse o meu trabalho e eu queria fazer o meu melhor.

Quem resume essa situação é o próprio Mario Sergio Cortella, nesse vídeo, que contempla a piadinha que eu adoro sobre o Mem de Sá e também uma variação da definição de mediocridade. Confira o trecho:

Já falei aqui sobre os problemas da ineficiência, causada, dentre outras coisas, pela tolerância ao baixo desempenho, a falta de confiança e pela falta de compromisso. Fazer o possível e não o melhor é o sintoma dessa conjugação de fatores.

Fazer o possível, fazer aquilo que resolve o problema de agora, sem se preocupar com os impactos, fazer o que é preciso para “se livrar” do problema é o que causa a crítica de número 25 da mesma lista que citei acima.

“Raramente as coisas são feitas corretamente da primeira vez. Você tem que voltar para o banco, consulado, escritório, mandar por e-mail ou telefonar várias vezes para as pessoas fazerem seu trabalho”.

Sobre essa crítica eu tenho inúmeras histórias (principalmente vivenciadas, mas também que me foram contadas). Certamente as contarei em outros posts no futuro. Imagino que você, leitor, também as viva diariamente na sua relação com as diferentes organizações por aí. Isso acontece, novamente, por causa do mínimo necessário.

Então são as pessoas que são preguiçosas, um problema cultural insuperável? Não acredito nisso. Há questões culturais no pano de fundo, sim. Mas, como sempre bato na tecla, da gestão. O baixo desempenho sistêmico só é possível com um “pacto de mediocridade”. O funcionário é ruim? Dê treinamento, oriente. O funcionário é preguiçoso? Cobre. É um caso perdido? Peça para que ele vá procurar outra ocupação. Todo mundo está trabalhando no modo “mínimo necessário”? Se algo não está funcionando, pelo menos um gestor, em algum lugar da organização (físico ou hierárquico) está dormindo no ponto.

Mas, óbvio, o gestor não pode resolver tudo. Não pode, é verdade. Mas pode fazer o melhor possível. Novamente, como diz Mario Sérgio Cortella, “não é o melhor do mundo; é o seu melhor, na condição que você tem, enquanto você não tem condições melhores para fazer melhor ainda”.

Para fechar, uma referência à história de Mogli, o menino lobo.  Nesse desenho, da década de 1960, o personagem urso Balu ensina o garoto protagonista a música “somente o necessário”. A mensagem que se quer passar é, de certa forma, o quesionamento ao consumismo desenfreado do capitalismo, que crescia intensamente no pós-guerra. No entanto, tem gente por aí que esquece a mensagem e fica só com o mantra, um pouco mais elaborado: “somente o mínimo necessário”. Aí não tem mesmo como fazer nada de extraordinário.

 

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Por que somos tão ineficientes?

Cena 1: Você está fazendo suas compras no supermercado. Já no caixa, a operadora passa os produtos no leitor de código de barras. Sem querer, ela passa duas vezes o mesmo produto. Um item caro, do qual você só precisa de uma unidade. Percebido o erro, ela precisa chamar a supervisora dela para passar um crachá e desfazer a operação. Lá se vão 3, 5, às vezes 10 minutos até que a pessoa responsável venha até o caixa para ‘autorizar’ a exclusão do item passado a mais.

Cena 2: O novo procurador, recém concursado, entra cheio de pique no departamento jurídico de alguma secretaria municipal, em algum canto do país. Em duas semanas, percebe que 7 processos administrativos que estavam na sua mesa eram de simples solução e os encaminha para deliberação do secretário da pasta. Outros três eram mais complexos e exigiram uma atenção especial. Mas ao fim do mês, além desses processos, vários outros foram encaminhados pelo procurador recém chegado. Ao fim de sua quinta ou sexta semana de trabalho, ele é chamado no canto por outros dois procuradores mais experientes que queriam saber qual era a dele. Por que ele queria ser tão eficiente, se ali naquela repartição a média de cada procurador era de menos de 2 ou 3 processos resolvidos por semana? Por que ele estava querendo prejudicá-los, foi a pergunta. Em pouco tempo, seu desempenho “se ajustou” aos demais.

Cena 3: A funcionária do help desk de uma empresa que vende softwares não se conforma com o fato de ela conseguir, em um ano, resolver 1200 chamados (pessoas das empresas que adquiriram os softwares da empres e que entram em contato por telefone e por e-mail com dúvidas sobre como operar o sistema), enquanto seus colegas resolvem apenas metade da quantidade que ela faz. “Os deles são chamados mais complexos”, argumenta o supervisor da área, num ato de autoengano. A funcionária, que não é boba, sabe o motivo. Ela leva o trabalho a sério, enquanto seus colegas e chefe dedicam mais tempo a brincadeiras e conversas (não que não se deva ter bom humor e bom relacionamento onde trabalhamos) em excesso. Ela tem três possibilidades: sair da empresa; resignar-se e ajustar seu desempenho aos demais, pois não vai receber nada a mais (em dinheiro ou reconhecimento) para fechar os dobro dos chamados; ou continuar indignada.

Cena 4: Você vai ao médico. Após o diagnóstico do seu caso, o médico prepara a receita para o remédio que você precisa comprar: um antibiótico. Dois papéis, que podem ser impressos ou feitos a mão (copiados, quem diriam, em papel carbono, por exemplo). Com as cópias da receita, você chega à farmácia e entrega ao farmacêutico. Após verificar a dosagem e pegar o remédio no estoque, ele precisa cuidar da “burocracia”. Carimba o verso de uma das vias e lhe pergunta seus dados e preenche, à mão, o formulário que foi ali carimabado (ou pede para que você o preencha). “Exigência do ministérios da saúde”, diz ele. Não importa quantas vezes você for à mesma farmácia, terá que fazer o mesmo procedimento. Mais preciosos minutos são gastos na operação.

Por que essas e outras cenas parecidas se repetem todo o tempo, em todos os cantos do país? Por que tanta ineficiência? E mais: por que aceitamos essa ineficiência como coisa normal? Ela não é normal, a menos que você entenda normal como sentido daquilo que virou norma, o mais comum e frequente.

Existe um fator em comum para esse tipo de problema de ineficiência: a gestão. As causas, é claro, são muitas e dependentes de diversas variáveis. Não pretendo esgotar essa discussão, muito menos tenho a pretensão de trazer uma explicação definitiva. No entanto, vejo três razões claras para essa questão, fora é claro, a ‘burrice’, como já discuti em outro post.

  1. Tolerância ao baixo desempenho
  2. Falta de confiança
  3. Falta de compromisso

Tolerância ao baixo desempenho

Esse aspecto é mais evidente nas cenas 2 e 3. Parece haver no Brasil, uma aceitação geral ao desempenho medíocre (o professor chileno Carlos Matus utilizava em suas aulas de Planejamento Estratégico Situacional o termo “acordo tácito do pacto de mediocridade ultra-estável”), isto é, a ideia de que a pessoa, podendo fazer o melhor, se contenta com o possível.

Uma das explicações está em nossa própria cultura. Temos uma certa aversão ao mérito. O divertido parece ser conseguir as coisas sem o esforço. Ir bem na prova depois de estudar muito parece diminuir o mérito do resultado alcançado. Não à toa, os bons alunos (defina-os como quiser) costumam ser discriminados na escola. Quem explica melhor essa situação é a antropóloga Livia Barbosa, em um artigo publicado na Revista do Serviço Público, chamado Meritocracia à Brasileira. Para resumir um pouco suas ideias, separei dois trechos de sua fala em um programa desenvolvido pela Unidade Central de Recursos Humanos do Governo de São Paulo, do qual tive o prazer de fazer parte durante os anos de 2013 e 2014.

Não quero entrar na discussão polêmica da meritocracia, que é o tema do vídeo. Só a palavra já pode fazer algumas pessoas faiscarem os olhos, por ter diversas interpretações, inclusive a de que se ignoram as diferenças de condições sociais e da origem das pessoas – o que não é o caso aqui. Mas vale a reflexão proposta pela antropóloga para pensarmos em por que aceitamos tão facilmente que o desempenho medíocre vire regra.

 

Falta de confiança

Outro aspecto que fica evidente na cena 1 e um pouco menos claro na cena 4 é a falta de confiança. Vivemos em um lugar em que parece que é difícil confiar nos outros. Simplesmente acreditar que as pessoas vão fazer o seu trabalho da maneira correta parece um pressuposto incogitável. “Se não, tem muito roubo”, como me disse uma supervisora de supermercado, ao desfazer a operação incorreta da operadora do caixa, quando perguntei por que razão as operadoras não tinham autonomia para desfazer o que haviam feito. Então, partimos da ideia de que empregamos ladrões?

Isso me lembra uma visita que fiz a duas empresas  de logística em razão de um trabalho de consultoria que estava realizando. Na primeira, eu e meus colegas fomos recebidos de forma cordial, simples e leve, até mesmo com uma placa de boas vindas com os nossos nomes. Na segunda, fomos revistados, passamos por detectores de metais, havia grades e catracas por todos os lados. Parecia dia de visita no presídio. “Se não, tem muito roubo”, nos disse o segurança.

A diferença está na relação de confiança estabelecida. E quem faz isso são os responsáveis pela gestão. São eles que se preocupam com como e com o que as pessoas devem perder tempo. Eles devem assumir a responsabilidade e, se for o caso, a sua desconfiança. Coloquem uma placa com os dizeres “somos ineficientes por que não confiamos nos nossos funcionários – e nem em você!”, se for caso.

 

Falta de compromisso

Quando se fala da falta de compromisso, já se pode apontar o dedo para “esses funcionários preguiçosos, que não querem saber de nada”. Mas aqui, não creio que seja, necessariamente, um problema de material humano. É uma questão de modelo mental, como já falei em outro post. As pessoas costumam reagir de forma compatível com como são tratadas. Trate-as como crianças e não estranhe suas reações ‘infantis’. Trate-as como adultos e os resultados serão bem melhores.

A falta de compromisso, então, está nos gestores, que não se comprometem e não exigem compromisso de volta. Isso por que não estão comprometidos, de fato, com o serviço que prestam. Se olharem para os processos do ponto de vista do cliente, sentirão algum tipo de ‘dor’, se tiverem brios e farão alguma coisa. Isso fica evidente na cena 4. Gestores do ministério da saúde, das empresas farmacêuticas, das farmácias, das clínicas e hospitais não estão comprometidos com a saúde das pessoas. Comprometem-se apenas em resolver seus problemas, com uma total falta de visão sistêmica, como costumo sempre falar.

Vejam esse caso, que poderia ser a cena 5 deste post: Estamos em Portugal. Você fica doente. Você vai ao médico. Após o diagnóstico do seu caso, o médico prepara a receita para o remédio que você precisa comprar: um antibiótico. Ele lança no sistema, a partir do seu número de contribuinte (que aqui seria o CPF), o tratamento recomendado. Você leva um papel apenas como registro. Ao chegar na farmácia, você dá o número do seu CPF e o farmacêutico o digita no sistema da farmácia. Ali encontra o que foi recomendado para você pelo médico. Em menos de um minuto, o remédio está na sua mão e você pode pagar por ele.

Os benefícios de usar a inteligência, nesse caso, vão além disso da agilidade e da eliminação da burocracia desnecessária. O sistema de saúde daquele país fica como todo o ‘lastro’ de informações sobre os tratamentos que a que você submeteu. Estatísticas poderão ser feitas de forma precisa. Custos poderão sem mais bem estimados. E por aí vai.

“Ah! Mas aqui no Brasil é complicado. Como vão fazer lá nos confins do interior do país onde nem computador existe?”. Certo. Aí, por que há um limite em uma região, passamos a régua, nivelamos por baixo e todos são punidos de forma igualitária? Se você acha que sim, veja a íntegra dos vídeos da Lívia Barbosa. Ou “ah, mas aqui no Brasil vão fazer um monte de esquemas com um sistema desses”. Falta de confiança, novamente. Aí, como de costume, por causa de alguns errados, também punimos igualitariamente todas as pessoas. Talvez, em relação à ineficiência, o Brasil não seja um país tão desigual assim.

Por fim, a cena 6: Estamos agora na Noruega, num supermercado. Ops. A operadora do caixa errou e passou duas vezes, sem querer, o mesmo produto? Simples. Ela mesma aperta um botão no terminal e passa novamente o produto na leitora de código de barras e voilà, operação desfeita. Sem encheção de ninguém e em menos de 5 segundos. Além disso, o sistema é construído de forma que a compra em finalização de um determinado cliente não “trava” o caixa para que outra compra comece a ser computada. Assim, enquanto o cliente decide se paga no crédito ou débito, a operadora já está, eficientemente, na metade dos itens da compra seguinte.

Aí eu pergunto: é preciso ser norueguês ou português para ficar inteligente? Ou é mais fácil largarmos mão da tolerância ao baixo desempenho, confiarmos mais uns nos outros e nos comprometermos de verdade com a solução dos problemas de forma eficiente?

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