Isso aconteceu há 10 anos. Em uma das minhas primeiras visitas ao Planetário do Carmo, em abril de 2006, logo após ter sido nomeado diretor dos planetários de São Paulo, um dos funcionários que ali trabalhavam me alertou: “espere a época das chuvas começar e você vai ver o que acontece aqui”. Não fazia muito sentido, pois o prédio era novo (inaugurado em novembro de 2005) e o atendimento ao público ia de vento em popa.
Mas uma inspeção um pouco mais cuidadosa começou a mostrar que o alerta poderia ser verdadeiro. O acabamento do prédio tinha algumas partes questionáveis, embora outras extremamente desnecessárias (não vem ao caso citar detalhes). E no fim daquele ano a época das chuvas chegou.
Ao contar, parece inacreditável. Mas eu estava lá e filmei o que acontecia quando chovia forte: a água entrava por todos os lados do prédio, inclusive pelo de cima. A laje parecia inexistente em algumas salas, em especial (e perigosamente), na sala ‘técnica’, que continha equipamentos importantes para o funcionamento do projetor, a alma de um planetário.
Finalmente tínhamos evidências para comprovar aquilo que constatamos meses antes e podíamos mostrar ao pessoal do gabinete que o prédio não tinha condições de funcionar, sem antes passar por um laudo técnico e reformas estruturais. Em fevereiro de 2007 o Planetário do Carmo foi fechado e iniciou-se um longo processo que envolvia desde a contratação de uma empresa especializada em laudos técnicos até a execução das reformas propriamente ditas.
Por que estou lembrando de algo tão antigo? (e que provavelmente não se resolveu por completo ainda). Porque esse é o mesmo filme, dadas as proporções, da notícia do último feriado da ciclovia Tim Maia, no Rio de Janeiro. Felizmente, no meu caso, a interdição foi antes de piores consequências. No caso da ciclovia foi tudo mais repentino. Uma onda gigante destruiu parte da bela ciclovia e, lamentavelmente, vidas se perderam.
Fazendo um rápido exercício de memória, sem apelar para o Google, lembro-me de casos como esses: (1) o Tunel Fernando Vieira de Melo, que liga as avenidas Eusébio Matoso e Rebouças, em São Paulo, foi inaugurado e teve que ser fechado três meses depois por problemas de alagamento, decorrentes da má estrutura da obra; (2) Algo parecido ocorreu com o corredor de ônibus da Av. Nova de Julho, também em São Paulo: crateras se abriram na via em momentos diferentes, supostamente por causa da chuva, mas não dá para negar que a origem está em má execução (ou fiscalização) da obra; (3) O Estádio do Engenhão no Rio teve que ser interditado por problemas estruturais, poucos anos depois de sua inauguração.
Alguns podem se lembrar também do fatídico caso da cratera na Linha 4 do metrô de São Paulo, em Pinheiros. A catástrofe nesse episódio foi ainda maior, mas diferentemente dos exemplos que enumerei acima, a obra estava em andamento e ainda não tinha sido inaugurada.
O que há de comum entre todos esses casos (e tantos outros que ocorrem quase que diariamente em todos os cantos do país – fique à vontade para ajudar a recuperar essa triste memória e deixe um comentário abaixo) parece um filme que se repete: problemas na execução da obra; problemas no projeto; problemas na fiscalização; problemas na contratação; adititivos de contrato; obras que custam 30%, 50%, 100%, 200% a mais que o previsto; prazo de entrega dilatado (e às vezes apressado para cumprir uma agenda de campanha eleitoral); e, em alguns casos, relações escusas entre contratante e contratados.
É verdade que o local e a obra variam, mas o roteiro é o mesmo. Quando leio essas notícias, sinto-me como o Bill Murray, personagem principal daquele excelente filme O Feitiço do Tempo. Ele sempre acorda no mesmo dia, com a esperança de que a marmota não volte para a toca, mas ela volta. Os acontecimentos até variam ao longo do dia, mas na essência tudo se repete. De novo, de novo e de novo…
Fica evidente que há problemas de gestão. Mas não apenas causados por maus gestores. Eles estão em toda parte, é verdade. Mas, novamente, há um problema generalizado no sistema. Isso começa na lei de licitações (a famigerada 8666/93) e passa pela forma como é feita a fiscalização, em como são aprovados os projetos, nas exigências sobre as contratadas e, também, pela pressa na entrega das obras quando se aproxima algum prazo importante (como eleições). Contudo, a mesma pressa não existe quando são consumidos meses e mais meses na elaboração do edital de contratação, nas idas e vindas dos pré-projetos ou estudos de viabilidade.
Da mesma maneira, vemos problemas e vícios em diversos sistemas por todo o país: o político, o de saúde, o tributário e por aí vai. Insisto que uma das origens desse quadro é a incapacidadade dos nossos gestores (nos setores público e privado) de enxergar as questões sistemicamente (como falei aqui). De não querer resolver os problemas pensando na próxima eleição, na promoção ou em fazer o filme com a alta direção. O foco excessivo no curto prazo, sacrifica a longo prazo. Hoje vivemos o longo prazo de más decisões no passado. A grande preocupação é que continuamos a tomar más decisões – e também no curto prazo, ao que parece.
Existe uma questão central, independente da capacidade intelectual dos gestores nas empresas e nos órgãos públicos. Há muita gente tomando decisões importantes sentada confortavelmente em suas salas e poucos realmente dispostos a levantar seus traseiros de suas cadeiras, ficar embaixo de chuva ou de sol escaldante para ver como as coisas de fato funcionam no mundo real.
Do alto de seus gabinetes e escritórios, esses gestores esquecem-se da realidade. Se os fatos contrariam suas convicções, eles pressionam para que os “fatos” mudem. A pesquisa de viabilidade ou de mercado diz uma coisa que vai contra o que eles querem fazer? Ordenam (no pior sentido que isso pode ter para uma gestão) que a pesquisa seja refeita até o resultado estar de acordo com o que querem – lembra aquela história de “torturar os dados até que eles confessem “.
Ir para a rua ou para o chão de fábrica é essencial. Alguns dizem que são mais aptos a ver a floresta e não as árvores, em alusão a ideia de visão estratégica versus operacional (assunto para outro post futuro). Entretanto, como costuma dizer Henry Mintzberg, esquecem-se que é debaixo das folhas que se encontram as oportunidades.
Para entender o sistema floresta, é preciso conhecer com profundidade como as plantas respiram e fazem fotossíntese, saber como o xilema e o floema circulam em seus caules, como absorvem nutrientes do solo. Não pode ter preguiça! Na sala com ar condicionado tudo parece mais fácil. Mas, no fim das contas, decidir de lá torna tudo mais difícil.
Ao ver esses fatos se repetindo, não tem como não lembrar da definição de insanidade: fazer sempre as mesmas coisas e esperar resultados diferentes. Aquilo que precisa ser mudado deve servir de estímulo (e não de desculpa, já que é muita coisa para fazer) para que o filme mude. Que tal começar levantando a bunda da cadeira hoje?