Por que somos tão ineficientes?

Cena 1: Você está fazendo suas compras no supermercado. Já no caixa, a operadora passa os produtos no leitor de código de barras. Sem querer, ela passa duas vezes o mesmo produto. Um item caro, do qual você só precisa de uma unidade. Percebido o erro, ela precisa chamar a supervisora dela para passar um crachá e desfazer a operação. Lá se vão 3, 5, às vezes 10 minutos até que a pessoa responsável venha até o caixa para ‘autorizar’ a exclusão do item passado a mais.

Cena 2: O novo procurador, recém concursado, entra cheio de pique no departamento jurídico de alguma secretaria municipal, em algum canto do país. Em duas semanas, percebe que 7 processos administrativos que estavam na sua mesa eram de simples solução e os encaminha para deliberação do secretário da pasta. Outros três eram mais complexos e exigiram uma atenção especial. Mas ao fim do mês, além desses processos, vários outros foram encaminhados pelo procurador recém chegado. Ao fim de sua quinta ou sexta semana de trabalho, ele é chamado no canto por outros dois procuradores mais experientes que queriam saber qual era a dele. Por que ele queria ser tão eficiente, se ali naquela repartição a média de cada procurador era de menos de 2 ou 3 processos resolvidos por semana? Por que ele estava querendo prejudicá-los, foi a pergunta. Em pouco tempo, seu desempenho “se ajustou” aos demais.

Cena 3: A funcionária do help desk de uma empresa que vende softwares não se conforma com o fato de ela conseguir, em um ano, resolver 1200 chamados (pessoas das empresas que adquiriram os softwares da empres e que entram em contato por telefone e por e-mail com dúvidas sobre como operar o sistema), enquanto seus colegas resolvem apenas metade da quantidade que ela faz. “Os deles são chamados mais complexos”, argumenta o supervisor da área, num ato de autoengano. A funcionária, que não é boba, sabe o motivo. Ela leva o trabalho a sério, enquanto seus colegas e chefe dedicam mais tempo a brincadeiras e conversas (não que não se deva ter bom humor e bom relacionamento onde trabalhamos) em excesso. Ela tem três possibilidades: sair da empresa; resignar-se e ajustar seu desempenho aos demais, pois não vai receber nada a mais (em dinheiro ou reconhecimento) para fechar os dobro dos chamados; ou continuar indignada.

Cena 4: Você vai ao médico. Após o diagnóstico do seu caso, o médico prepara a receita para o remédio que você precisa comprar: um antibiótico. Dois papéis, que podem ser impressos ou feitos a mão (copiados, quem diriam, em papel carbono, por exemplo). Com as cópias da receita, você chega à farmácia e entrega ao farmacêutico. Após verificar a dosagem e pegar o remédio no estoque, ele precisa cuidar da “burocracia”. Carimba o verso de uma das vias e lhe pergunta seus dados e preenche, à mão, o formulário que foi ali carimabado (ou pede para que você o preencha). “Exigência do ministérios da saúde”, diz ele. Não importa quantas vezes você for à mesma farmácia, terá que fazer o mesmo procedimento. Mais preciosos minutos são gastos na operação.

Por que essas e outras cenas parecidas se repetem todo o tempo, em todos os cantos do país? Por que tanta ineficiência? E mais: por que aceitamos essa ineficiência como coisa normal? Ela não é normal, a menos que você entenda normal como sentido daquilo que virou norma, o mais comum e frequente.

Existe um fator em comum para esse tipo de problema de ineficiência: a gestão. As causas, é claro, são muitas e dependentes de diversas variáveis. Não pretendo esgotar essa discussão, muito menos tenho a pretensão de trazer uma explicação definitiva. No entanto, vejo três razões claras para essa questão, fora é claro, a ‘burrice’, como já discuti em outro post.

  1. Tolerância ao baixo desempenho
  2. Falta de confiança
  3. Falta de compromisso

Tolerância ao baixo desempenho

Esse aspecto é mais evidente nas cenas 2 e 3. Parece haver no Brasil, uma aceitação geral ao desempenho medíocre (o professor chileno Carlos Matus utilizava em suas aulas de Planejamento Estratégico Situacional o termo “acordo tácito do pacto de mediocridade ultra-estável”), isto é, a ideia de que a pessoa, podendo fazer o melhor, se contenta com o possível.

Uma das explicações está em nossa própria cultura. Temos uma certa aversão ao mérito. O divertido parece ser conseguir as coisas sem o esforço. Ir bem na prova depois de estudar muito parece diminuir o mérito do resultado alcançado. Não à toa, os bons alunos (defina-os como quiser) costumam ser discriminados na escola. Quem explica melhor essa situação é a antropóloga Livia Barbosa, em um artigo publicado na Revista do Serviço Público, chamado Meritocracia à Brasileira. Para resumir um pouco suas ideias, separei dois trechos de sua fala em um programa desenvolvido pela Unidade Central de Recursos Humanos do Governo de São Paulo, do qual tive o prazer de fazer parte durante os anos de 2013 e 2014.

Não quero entrar na discussão polêmica da meritocracia, que é o tema do vídeo. Só a palavra já pode fazer algumas pessoas faiscarem os olhos, por ter diversas interpretações, inclusive a de que se ignoram as diferenças de condições sociais e da origem das pessoas – o que não é o caso aqui. Mas vale a reflexão proposta pela antropóloga para pensarmos em por que aceitamos tão facilmente que o desempenho medíocre vire regra.

 

Falta de confiança

Outro aspecto que fica evidente na cena 1 e um pouco menos claro na cena 4 é a falta de confiança. Vivemos em um lugar em que parece que é difícil confiar nos outros. Simplesmente acreditar que as pessoas vão fazer o seu trabalho da maneira correta parece um pressuposto incogitável. “Se não, tem muito roubo”, como me disse uma supervisora de supermercado, ao desfazer a operação incorreta da operadora do caixa, quando perguntei por que razão as operadoras não tinham autonomia para desfazer o que haviam feito. Então, partimos da ideia de que empregamos ladrões?

Isso me lembra uma visita que fiz a duas empresas  de logística em razão de um trabalho de consultoria que estava realizando. Na primeira, eu e meus colegas fomos recebidos de forma cordial, simples e leve, até mesmo com uma placa de boas vindas com os nossos nomes. Na segunda, fomos revistados, passamos por detectores de metais, havia grades e catracas por todos os lados. Parecia dia de visita no presídio. “Se não, tem muito roubo”, nos disse o segurança.

A diferença está na relação de confiança estabelecida. E quem faz isso são os responsáveis pela gestão. São eles que se preocupam com como e com o que as pessoas devem perder tempo. Eles devem assumir a responsabilidade e, se for o caso, a sua desconfiança. Coloquem uma placa com os dizeres “somos ineficientes por que não confiamos nos nossos funcionários – e nem em você!”, se for caso.

 

Falta de compromisso

Quando se fala da falta de compromisso, já se pode apontar o dedo para “esses funcionários preguiçosos, que não querem saber de nada”. Mas aqui, não creio que seja, necessariamente, um problema de material humano. É uma questão de modelo mental, como já falei em outro post. As pessoas costumam reagir de forma compatível com como são tratadas. Trate-as como crianças e não estranhe suas reações ‘infantis’. Trate-as como adultos e os resultados serão bem melhores.

A falta de compromisso, então, está nos gestores, que não se comprometem e não exigem compromisso de volta. Isso por que não estão comprometidos, de fato, com o serviço que prestam. Se olharem para os processos do ponto de vista do cliente, sentirão algum tipo de ‘dor’, se tiverem brios e farão alguma coisa. Isso fica evidente na cena 4. Gestores do ministério da saúde, das empresas farmacêuticas, das farmácias, das clínicas e hospitais não estão comprometidos com a saúde das pessoas. Comprometem-se apenas em resolver seus problemas, com uma total falta de visão sistêmica, como costumo sempre falar.

Vejam esse caso, que poderia ser a cena 5 deste post: Estamos em Portugal. Você fica doente. Você vai ao médico. Após o diagnóstico do seu caso, o médico prepara a receita para o remédio que você precisa comprar: um antibiótico. Ele lança no sistema, a partir do seu número de contribuinte (que aqui seria o CPF), o tratamento recomendado. Você leva um papel apenas como registro. Ao chegar na farmácia, você dá o número do seu CPF e o farmacêutico o digita no sistema da farmácia. Ali encontra o que foi recomendado para você pelo médico. Em menos de um minuto, o remédio está na sua mão e você pode pagar por ele.

Os benefícios de usar a inteligência, nesse caso, vão além disso da agilidade e da eliminação da burocracia desnecessária. O sistema de saúde daquele país fica como todo o ‘lastro’ de informações sobre os tratamentos que a que você submeteu. Estatísticas poderão ser feitas de forma precisa. Custos poderão sem mais bem estimados. E por aí vai.

“Ah! Mas aqui no Brasil é complicado. Como vão fazer lá nos confins do interior do país onde nem computador existe?”. Certo. Aí, por que há um limite em uma região, passamos a régua, nivelamos por baixo e todos são punidos de forma igualitária? Se você acha que sim, veja a íntegra dos vídeos da Lívia Barbosa. Ou “ah, mas aqui no Brasil vão fazer um monte de esquemas com um sistema desses”. Falta de confiança, novamente. Aí, como de costume, por causa de alguns errados, também punimos igualitariamente todas as pessoas. Talvez, em relação à ineficiência, o Brasil não seja um país tão desigual assim.

Por fim, a cena 6: Estamos agora na Noruega, num supermercado. Ops. A operadora do caixa errou e passou duas vezes, sem querer, o mesmo produto? Simples. Ela mesma aperta um botão no terminal e passa novamente o produto na leitora de código de barras e voilà, operação desfeita. Sem encheção de ninguém e em menos de 5 segundos. Além disso, o sistema é construído de forma que a compra em finalização de um determinado cliente não “trava” o caixa para que outra compra comece a ser computada. Assim, enquanto o cliente decide se paga no crédito ou débito, a operadora já está, eficientemente, na metade dos itens da compra seguinte.

Aí eu pergunto: é preciso ser norueguês ou português para ficar inteligente? Ou é mais fácil largarmos mão da tolerância ao baixo desempenho, confiarmos mais uns nos outros e nos comprometermos de verdade com a solução dos problemas de forma eficiente?

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