Pensamento Polarizado

Ontem foi dia de Flá-Flu no futebol. E, excepcionalmente, esse foi disputado em São Paulo. Algo bastante simbólico, pois não há estádio disponível no Rio de Janeiro para abrigar um jogo desse porte (problemas de gestão de alguma ordem?). De qualquer forma, não estou aqui para falar do Flá-Flu do futebol, cujo placar, também bastante simbólico, foi 0x0, mas para aproveitar o gancho dessa que tem sido a imagem mais frequente para o atual cenário político do nosso país. Como falou a escritora Tati Bernardi, também acho que “Estar completamente perdido é a única posição política digna do momento“. Mas aproveito o ensejo do Flá-Flu para tentar fazer minhas as palavras do Antonio Prata, na Folha, semana passada:

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[…]

Dizem que vivemos um Flá-Flu. Quem dera! Saudades dos tempos em que havia dois times e eu sabia para quem torcer. Hoje, em que arquibancada vou me sentar? Da Dilma e do PT, que mentiram e quebraram o país para se reeleger? Do PSDB, que varre chacinas para baixo do tapete estatístico e vota pautas bomba para apressar o impeachment?

Pra ser franco, nem entendo direito que campeonato está sendo jogado. O que é a Lava Jato, por exemplo? É uma ação imparcial para acabar com a corrupção generalizada entre nós ou uma revanche classista, visando punir os ilícitos apenas de um lado? E se for uma revanche classista para punir ilícitos apenas de um lado, isso por acaso perdoa os ilícitos cometidos por tal lado? Estamos vivendo um momento catártico, tirando esqueletos seculares do armário? Ou voltando na história, fortalecendo os eternos donos do poder e seus velhos capitães do mato?

Não sei, realmente. Às vezes sou Flá, às vezes sou Flu, mas na maior parte do tempo vaio os dois times e procuro no horizonte, sem sucesso, um Botafogo ou Vasco que venha resgatar a minha esperança no ludopédio político […]

Como escrevo sobre gestão, a minha ideia é propor uma metadiscussão. Essa ideia de polarização, sabe? De Flá versus Flu, esquerda versus direita, socialismo versus capitalismo etc.

Em gestão, a contraposição binária mais comum talvez seja a do técnico versus político. Coloca-se na cabeça de que um assunto ou é técnico ou é político. “Ah, isso é uma questão política, como técnico, não devo me meter” ou “bom, nós aqui do gabinete levamos várias coisas em consideração, mas esse assunto é técnico” e por aí vai.

Como essa, em outra área em que circulo, a pesquisa acadêmica, é comum ver a contraposição qualitativo versus quantitativo. Ou seja, sua pesquisa ou é uma coisa ou outra. Aí, alguns vêm dizer que é preciso fazer uma triangulação metodológica, ou seja, usar os dois tipos de pesquisa, o qualitativo, que, em administração, é entendido como sinônimo de entrevistas, estudos de caso e afins, e o quantitativo, percebido como qualquer coisa que contenha números e seja passível de análises estatísticas. Não é preciso dizer que para um pesquisador de uma “hard science” (por exemplo, da física), qualquer coisa em administração pode ser entendida como qualitativa. Mas essa é outra discussão.

O meu ponto aqui é com esse paradigma de polarização, o famoso mundo binário. Claro que não suponho que as pessoas são idiotas e aceito perfeitamente aquele argunto: “Ah, mas não é tudo preto ou branco, existem nuances de cinza entre os extremos”. Ok. Existem os tons de cinza (que podem ser 50 ou tantos quantos você desejar). Pode-se até falar em todas as cores do arco-íris, em vez do preto e do branco. Contudo, quando uma pessoa encara a realidade dessa forma, pode até ter algum conforto mental, mas continua polarizando.

Explico: para considerar que existem visões políticas entre esquerda e direita (como se posicionar no centro, caso contrário?), assuntos mais técnicos ou mais políticos, nossa mente continua sob a perspectiva de uma dualidade. Apenas aceitou que é possivel se posicionar não num extremo ou no outro, mas em qualquer ponto entre eles, como uma fila de cadeiras do cinema, em que temos que escolher uma poltrona para nos sentar, que pode ser mais à direta, mais à esquerda ou mais ao centro. Porém, o auditório é muito maior, existem diversas filas. E, mais do que isso, para as ideias, não é preciso escolher um único lugar para sentar, diversas possibilidades existem. Por isso gosto tanto da fase do escritor norte-americano, F. Scott Fitzgerald:

A marca de uma inteligência de primeira grandeza é a capacidade de ter duas ideias opostas presentes ao mesmo tempo na mente e nem por isso deixar de funcionar.

Essa percepção de polarização, mesmo com o desconto do espectro de possibilidades entre os extremos, é o que se pode chamar de modelo mental.

Peter Senge, em seu excelente livro A Quinta Disciplina: A arte e a prática da organização que aprende, define modelos mentais como as premissas fortemente arraigadas, generalizações ou imagens que influenciam como compreendemos o mundo e como agimos. A quinta disciplina, para esse autor, adivinhem só, é justamente o pensamento sistêmico, que já foi tema desse post aqui.

Ok. E o que isso tem a ver com a tal da gestão? Agora já deve ter ficado claro. Pois se suas crenças influenciam o seu entendimento do mundo e suas atitudes, o modelo mental, seja ele qual for, influencia como você vai gerenciar (sua equipe, seus negócios ou sua vida).

Vamos a um exemplo mais simples. Douglas McGregor trouxe, ainda na década de 1960, em sua obra notável O Lado Humano da Empresa, o contraponto entre duas visões sobre como as pessoas se comportam no trabalho. Muito resumidamente, na chamada Teoria X, o ser humano é visto como preguiçoso, alguém que evita responsabilidades e vê o trabalho como um mal necessário para ganhar dinheiro. Por esse motivo, deve ser controlado, elogiado ou punido para ser ‘direcionado’ em seu comportamento. No contraponto, a Teoria Y, o trabalho é encarado pelas pessoas como algo natural, em que se pode encontrar satisfação e realizar-se. Nesse caso, cabe aos responsáveis pela gestão criar as condições para que o trabalhador se desenvolva e desempenhe plenamente.

No entanto, o que mais se vê por aí é um discurso de Teoria Y, mas que, no fundo, oculta as crenças arraigadas de que as pessoas são como McGregor enunciou na Teoria X. Ou, que sob dadas condições as pessoas “são” X ou Y. Ou pior ainda, categorizam as pessoas num extremo, no outro, ou em algum lugar entre eles. Lembra a ideia da fileira da sala de cinema novamente.

No fundo, ainda acho que o enquadramento na Teoria X ainda prevalece no Brasil. Talvez seja reflexo de uma cultura de herança escravocrata, em que alguns se acham com o direito inalienável de ter pessoas lhes servindo, pelo simples fato de que “se esforçam, trabalham e pagam seus impostos” para conquistar esse direito. Gestores com essa mentalidade normalmente preferem um monte de assistentes para poder mandar, pois um profissional qualificado e pensante, além de ser mais caro, o desafia. Quando esses bons profissionais são perdidos, algumas fugas como “não aguentou a pressão”, “não tinha o perfil” (e essa é verdade mesmo) impedem esses gestores incompetentes de se olhar no espelho. Aí as estruturas administrativas incham, os custos aumentam e a culpa é toda colocada em alguém que está fora. Mas isso é assunto para outro post.

Mas não nos iludamos. As ideias de McGregor são muito úteis, mas insuficientes. Pensar as pessoas no trabalho em uma contraposição entre Teorias X e Y, ou mesmo em uma combinação entre as duas, é ter exatamente um modelo mental limitado de polarização, justamente o tema para o qual quero chamar a atenção aqui.

Paradigma de polarização x complementaridade

Passar a pensar as questões (de gestão ou da vida) não como antagonismos, mas passíveis de complementaridade é o recomendável. Um assunto de gestão pode ser técnico e político ao mesmo tempo (imagine o que seria construir um trem bala de São Paulo ao Rio de Janeiro). Já falamos desse assunto em outros lugares, como no capítulo O mesmismo e outros ismos na gestão de pessoas no setor público, do livro Mérito, Desempenho e Resultados (disponível online aqui e de onde tirei a imagem acima), e é preciso continuar batendo nessa tecla.

A ilustração, com caráter meramente didático, de sair da representação unidimensional (reta), que leva à polarização, para uma representação bidimensional (plano), que já favorece a visualização da complementaridade, ajuda. Entretanto, em nossas mentes, a complexidade pode aumentar de uma forma muito superior em relação ao que podemos representar no papel ou no mundo físico. Diversas variáveis e diversas dimensões das questões devem ser incluídas, mesmo que pareçam opostas. Elas não são opostas. É o seu modelo mental que quer assim.

Assim, continuar pensando em esquerda x direita, socialistas x capitalistas, petralhas x coxinhas, técnicos x políticos, homossexuais x heterossexuais é uma escolha sua. É limitante, mas é, ainda assim, uma escolha possível. Mas, certamente, já saberei que você falhou no teste da mente de primeira grandeza.

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