Antes: você entra para fazer a troca de óleo do seu carro na oficina (na verdade, não é uma oficina, mas uma troca de óleo mesmo). O ambiente é limpo e organizado. Há espaço suficiente para as plataformas elevatórias para os automóveis e para que os atendentes que executam o trabalho (o popular “trocador de óleo”) circulem sem atrapalhar uns aos outros.
Um detalhe chama a atenção: um enorme balcão separa os produtos do restante da loja. O estoque de lubrificantes automotivos de todas as espécies e variedades é inacessível para os “trocadores”. Atrás do balcão está o “fiscal”, a pessoa encarregada de ir até o estoque e buscar o produto que o “trocador” pediu, após ver a especificação do lubrificante adequado ao veículo do cliente e, eventualmente, entrar num acordo sobre qual marca será utilizada na troca. Vez ou outra, o “fiscal” se engana e traz o produto errado. Precisa voltar ao estoque, quardar o produto errado e pegar o certo. Ou descobre que o produto acabou e precisa perguntar qual outro pegar ao “trocador”.
O sistema é notavelmente ineficiente, mas parece funcionar. O antigo dono da oficina acreditava que era a melhor maneira para evitar ser lesado. Afinal, há muito “desvio” de produtos. É preciso instalar um sistema de controle bastante eficaz.
Depois: você entra para fazer a troca de óleo do seu carro na oficina (na verdade, não é uma oficina, mas uma troca de óleo mesmo). O ambiente é limpo e organizado. Há espaço suficiente para… Epa! Cadê o balcão? Agora os produtos estão espalhados pela loja, organizados em pequenas prateleiras, facilmente acessíveis aos “trocadores”. Ele decide qual o produto que será colocado no automóvel e pronto. É só pegar na estante ao seu lado e começar o serviço. Acabou a barreira. Acabou o controle “eficaz”. Mas e os “desvios” de produtos? Cessaram? Provavelmente não.
Conversando com o novo proprietário da loja descubro o motivo: “a estrutura que era utilizada para manter o controle custa muito mais caro do que as perdas que tenho pelos desvios”. Mas para quem pensa que então agora liberou geral, ele alerta: “Eu estou de olho”. Se um funcionário é pego subtraindo produtos da loja, ele é prontamente demitido. “Todos sabem como as coisas funcionam aqui. A gente tem uma relação de confiança”.
O controle excessivo
Com esse relato não pretendo fazer apologia ao ‘não controle’. Minha intenção é iniciar a discussão pela ideia de que é necessário saber dosar. Da mesma forma que o lubrificante do seu carro tem que estar no nível correto (nem acima e nem abaixo dos dois risquinhos da vareta de óleo do motor), com a densidade correta (dentro dos limites estabelecidos pelos fabricantes), o sistema de controle, em qualquer atividade, precisa ser compatível com o que se está fazendo. O seu nível de complexidade tem que vir na mesma proporção do benefício que ele traz.
Quem já foi morar em um prédio recém-construído sabe do que estou falando. As primeiras reuniões são sempre a mesma coisa: janela da área de serviço, pode ou não pode fechar a sacada com vidro (para aqueles ‘privilegiados’ das varandas gourmets), demarcação das vagas de garagem, quem vai ser o síndico etc. E um tópico sempre deixa as pessoas mais agitadas: a segurança. Ainda mais para quem vive em grandes centros, onde a sensação de segurança é baixa.
Aí alguém que trabalha em uma empresa de segurança (que feliz coincidência) se oferece para ser síndico ou fazer parte do conselho e todos ficam muito tranquilos. Então, implementa-se um sistema de controle que envolve muitos postos para vigias e 30, 40, 50 câmeras. Ou seja, muito mais do que um simples edifíco de torre única, com 50 ou 60 apartamentos precisa. Eu sei do que estou falando porque passei por isso. Eu era a triste voz no deserto alertando sobre o exagero.
Alguns anos ou meses depois vem a constatação. Os custos do condomínio são altos. E onde está o contrato que mais onera os custos? Exatamente. O de portaria e vigilância. E aquele que foi o primeiro síndico? Já se mudou. Foi para um outro prédio recém construído. Já ouvi dizer que são as próprias empresas de segurança que estimulam isso. Outros acham que é um modus operandi apenas da pessoa, que provavelmente ganha comissões pelas vendas. Não vem ao caso aqui.
O gancho é o mesmo da troca de óleo: um sistema de controle superdimensionado.
Aprendi quando era diretor dos Planetários de São Paulo que o segurança desarmado do nosso prédio no Parque do Ibirapuera era muito mais eficaz para coibir o vandalismo do que a cavalaria armada de um museu ali próximo. Talvez por já ter trabalhado na fundação casa, o segurança do planetário sabia que um diálogo responsável era mais eficaz que uma tonelada de ameaças. Enquanto estive lá essa era a abordagem e funcionava. Era um sistema sem exageros, eficaz. Consertar uma janela de vez em quando seria mais barato que manter um sistema rebuscado de vigilância 24 horas. Mas nunca tivemos uma janela quebrada ou um muro riscado.
A diferença entre o remédio e o veneno é a dose
Quem estudou um pouquinho de administração talvez já tenha visto algumas das definições clássicas. Em todas elas o controle sempre aparece como uma função primordial. E de fato é. Como vou saber se o que estou fazendo está certo sem algum tipo de controle? Obviamente, preciso primeiro saber o que estou fazendo. E a partir daí vou ter uma ideia de como controlar para saber se deu certo. Nem acima, nem abaixo do risquinho. Na medida certa. Na proporção do benefício gerado.
Aliás, esse é um termo que gera muita controvérsia. Quando ministro aulas de administração para pessoas ligadas à área de educação, por exemplo, tenho que tomar cuidado. As pessoas quase pulam da cadeira quando ouvem o termo ‘controle’. Aí é hora de desfazer o mal entendido. Quando trazemos a ideia para mais perto de Paulo Freire e sua visão da educação como um processo de ação-reflexão-ação, fica muito mais fácil trabalhar a ideia de planejamento-execução-controle da administração.
Esse controle da gestão é o de avaliar, de verificar se tudo corre de acordo com os planos ou em que grau divergem (até para eu saber se preciso mudar o plano ou preciso melhorar a forma como estou fazendo as coisas) e não de “ficar em cima”, cerceando a liberdade, destruindo a autonomia. Contudo, há muitos gestores que confundem e estipulam controles que viram fins em si mesmos.
E errar na dose é muito fácil quando se esquece o propósito do que se está fazendo e não se leva em conta a relação de custo-benefício de qualquer sistema implantado. Estipula-se um fiscal, depois o fiscal do fiscal e, mais adiante, cria-se uma equipe para gerenciar os fiscais e outra para trabalhar todas as informações geradas nas fiscalizações. Como essas pessoas não podem ficar sem trabalhar, nos momentos de baixa ocupam-se, isto é, encarregam-se de criar mais mecanismos de controle e entupir de trabalho aqueles que estão tentando, por exemplo, vender. Passa-se o tempo e a gestão se pergunta por que a organização é tão ineficiente.
As medidas desse exemplo são obviamente exageradas. Mas, no dia a dia, as empresas não percebem que estão fazendo isso. O que parece é que há organizações que invertem a lógica e moldam todas as suas políticas e práticas para facilitar o controle e não o controle para facilitar a prática. É o vendedor que perde a oportunidade de fazer um negócio excelente, mas que o “sistema não deixa”. É o relatório desnecessário que toma tempo do funcionário que poderia estar pensando em coisas mais relevantes (até para colocar à prova se o funcionário sabe pensar em coisas mais relevantes). E por aí vai. Não dá para negar que uma grande parcela dessas medidas é pura e simplesmente ‘burrice‘.
Há muito tempo (cerca de uns 10 anos, mais ou menos), li o livro de um monge alemão, A Sabedoria dos monges na arte de liderar pessoas, que passava os ensinamentos da doutrina beneditina para a prática da liderança. O autor, Anselm Grün, publicou outras obras mais ou menos nessa linha desde então, mas esse foi o único que li. Em um dado momento, lembro-me de que o autor desenvolve um raciocínio, partindo da sabedoria dos monges beneditinos, de que o foco excessivo no controle tem como resultado um adoecimento das pessoas que trabalham na organização. Ou seja, errar na dose do controle gera aborrecimento e as pessoas aborrecidas podem tanto trabalhar contra a empresa, contentando-se com o mínimo necessário ou, frustradas, acabam ficando doentes mesmo. A diferença entre o remédio e o veneno está na dose.
Confiança e controle
O vocábulo controle vem do francês contrôle, que é uma contração do termo contrerôle, originado no latim, contrarotulus, que é a fusão dos termos contra, que quer dizer contra mesmo e rotulus, que é o diminutivo de roda. Isso tem a ver com o sistema contábil de partidas dobradas, originado nos tempos medievais, em Veneza, em que eram utilizados dois rolos de papel um para o devedor (o rotulus) e outro para o credor (o contrarotulus). Daí a necessidade de ser usar o contrarotulus ou o controle para garantir que as operações comerciais estavam em conformidade com os acordos.
Ninguém está falando para deixar os portões abertos, escancarados. Mas também sabemos que não é a existência de 50 câmeras e de 10 seguranças de terno e gravata que vai deixar aquele edifício instransponível. Reitero que o nível de controle a ser implantado depende do contexto e do benefício gerado. Veja esse vídeo com um “teste de honestidade” comparando Brasil e Estados Unidos (para variar):
Ok. Dá para perceber que não é em qualquer situação que a confiança irrestrita funciona. Como no caso da indignação, também pode ser uma questão cultural. Nesse caso, é preciso que um vendedor esteja atrás do balcão. Mas o relógio vai deixar de custar 20 reais (e custará muito mais se tivermos que colocar um fiscal do vendedor, o fiscal do fiscal e tantos outros).
Então, talvez seja como na troca de óleo do início do post. Para mudar o sistema de controle, antes o proprietário também mudou o sistema de confiança. Tratou os “trocadores” como adultos e estabeleceu limites claros para sua ação, com mais flexibilidade, mas também com mais responsabilidade. Essa talvez seja a diferença para o vídeo. O que se percebe é que é a confiança que lubrifica as relações humanas. Quando ela seca ou quando ela vaza, o motor para.
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