Essa é de 1999. Sim, faz tempo. Estava no meu primeiro ano da graduação em física e minha principal forma de deslocamento para a faculdade era o transporte público. Em uma das idas ou vindas, lembro-me de uma conversa entre um aluno e um professor, sentados no banco em frente a mim, no ônibus.
Dizia o aluno: “mas professor, desde quando o vestibular avalia conhecimento?”. Foi um tema que chamou a atenção, afinal eu havia acabado de passar pelo maior vestibular do país, a FUVEST. Então, foquei a atenção na conversa dos dois, já que era um assunto que me interessava e ainda estava “quente” naquele início de ano.
E o aluno continuou: “Vestibular não avalia nada. É gincana! Sim, professor, gincana! Não ganha quem sabe mais, ganha quem pinta mais bolinhas certas!”.
Só achei graça na hora e, embora achasse que a probabilidade de pintar bolinhas certas fosse maior para aqueles que estudassem (ou, na verdade, que estivessem mais bem treinados), não pude discordar.
A gincana de pintar bolinhas ainda é o principal mecanismo para seleção de alunos para entrar nas faculdades. E hoje, a maior delas é o ENEM. Pelo menos, a maioria dessas provas exige que o aluno escreva, no mínimo, uma redação e que responda a questões abertas, o que deveria permitir, teoricamente, avaliar seu poder de argumentação e alguns outros aspectos que passariam batido apenas com a prova objetiva.
Você utilizaria esse método para contratar alguém em uma empresa?
É bem verdade que existem empresas de ponta, principalmente as grandes consultorias, que utilizam em uma das fases do processo seletivo provas com questões de raciocínio lógico, raciocínio verbal, inglês, e até alguns modelos pré-formatados importados como o GMAT. No entanto, elas não se contentam em escolher simplesmente as pessoas que mais pintaram bolinhas certas (mesmo que seja muito improvável um desempenho destacado nesse tipo de teste ser obra do mero acaso). Após a prova, algumas empresas fazem dinâmicas de grupo, outras fazem etapas de resolução de casos e, em praticamente 100% dos casos, são realizadas entrevistas com os candidatos. Claro que também há exageros até nessa parte. Mas parece ser um crivo mais sensato.
O objetivo é simples: minimizar a probabilidade de colocar uma pessoa inadequada para desempenhar determinada função. Nenhuma prova ou teste consegue simular a real condição de trabalho a que a pessoa será submetida. Mas uma avaliação criteriosa do conjunto pode tentar mapear se os candidatos possuem ou não as competências necessárias para o que as empresas procuram. E as empresas contratam porque têm problemas, não por caridade. Querem pessoas que consigam resolvê-los.
E por falar em problemas, é inegável que o setor público no Brasil os tem aos montes. Talvez muito mais complexos do que os da maioria das empresas. Precisamos, então, de pessoas muito qualificadas para resolvê-los. Não falo só do gabinete dos ministros e secretários, mas, principalmente, da base de funcionários que vai colocar a mão na massa, que vai colocar as políticas (para o bem ou para o mal) para funcionar.
E como é feita a seleção na maioria dos casos? Acertou. Gincana!
É possível contar nos dedos os exemplos de concursos públicos que utilizam outras fases, como provas com questões abertas ou que levem em conta o passado profissional dos candidatos. O problema? É que ao utilizar fases menos “objetivas” o risco de impuganção do concurso aumenta exponencialmente. A meta parece ser a de ter o mínimo de questionamento possível na esfera jurídica. A preocupação é com a impessoalidade e com a isonomia e não com a gestão.
Para quem tiver interesse na questão, recomendo uma das entrevistas da série Conversações, produzida pela Unidade Central de Recursos Humanos do Governo de São Paulo. Tive o prazer de trabalhar em algumas ocasiões tanto com o Thiago Souza Santos, diretor da Unidade, quanto com o meu xará, Fernando Coelho, professor da USP. Vale a pena assistir pelo menos a esse segmento da conversa entre eles:
Acrescentando ao tema, a excelente análise de outro xará meu, o Fernando Lanzer, sobre os aspectos culturais que ajudam a entender a corrupção no Brasil, vai ao ponto. Porém, na minha humilde opinião, também é necessário colocar na mesa a questão da entrada no setor público. E isso se liga diretamente aos concursos e à motivação de quem vai atrás dessa perspectiva de carreira.
A busca por estabilidade e por um ganho certo (e até uma perspectiva de aposentadoria) parecem ser mais fortes do que as características individuais da pessoa e as funções que serão desempenhadas após o sucesso na gincana, digo, na prova. Essa busca pela estabilidade, que motiva muitos dos concurseiros, pode ser norteada pela dimensão cultural Orientação para o Desempenho versus Qualidade de Vida, uma das dimensões culturais do trabalho seminal do psicólogo holandês Geert Hofstede.
Antes de mais nada, é inegável o nível de dedicação, esforço e estudo necessários para se ter sucesso na maioria dos exames de concursos públicos. Contudo, um aspecto não é levado em conta: será que esses candidatos bem classificados têm o perfil ou têm as competências de que nós aqui em determinado órgão público precisamos?
Porém, se não colocarmos as pessoas com o perfil de competências adequado nas funções públicas, a porta para o mau desempenho se abre. Ainda mais se o desempenho não é, culturalmente, uma prioridade. E como tenho dito, a incompetência precede a corrupção. Não porque os novos ingressantes no serviço público terão uma propensão maior à corrupção, longe disso. Mas porque, ao não ter o perfil de competências necessário para a solução dos problemas de gestão (por exemplo), o caminho fica facilitado para os mal intencionados que conhecem e exploram as falhas do sistema.
Em 1999, quando vi aquele diálogo no ônibus a caminho da faculdade, se eu fosse a algum restaurante, precisava escolher o que iria comer com base na coluna da direita do cardápio, isto é, pelo preço. Depois olhava a coluna da esquerda para ver o que era e se eu gostava ou não dos ingredientes que compunham aquele prato.
Noto que boa parte das pessoas que prestam concursos públicos têm utilizado uma sistemática parecida. Olham na coluna da direita para ver os salários (buscam os mais elevados, é claro, ao contrário do que eu fazia no restaurante) e depois vão para a coluna da esquerda para ver se possuem os requisitos (isto é, formação exigida). E aí parece não importar se a função é de papiloscopista da polícia federal, analista administrativo de uma agência reguladora ou fiscal da receita federal.
Agora, vamos combinar que são atividades completamente distintas e que exigem perfis que deveriam, em teoria, ser completamente diferentes. Quem tiver paciência pode procurar as provas e editais desses concursos e ver se há uma grande distinção no processo seletivo ou no conteúdo do exame. Não há.
Vale a pena dar uma olhada em outro segmento da conversa a que me referi acima:
Outra questão a se colocar em pauta, é que o concurseiro típico, pelo menos nos concursos mais desejados, é alguém recém-formado, na “pegada” para fazer provas. Isso, em si, não é um problema. Mas é preciso levar em conta que aquela será a primeira experiência de trabalho de grande parte dos ingressantes. Aqueles que já estão na organização terão um papel crucial na formação dessas pessoas. E isso deve ir muito além da clássica repreensão de que os novos funcionários estão “trabalhando demais”.
Uma etapa de formação ainda durante a seleção pode ser um bom caminho. Um acompanhamento próximo nos primeiros meses e anos dos recém-ingressados pode garantir um desempenho superior lá na frente, ou até mesmo, encontrar outro lugar para que aquele novo funcionário possa trabalhar melhor, de acordo com suas competências. As empresas fazem isso com a preparação daqueles que podem vir a ser executivos, os trainees, e com investimentos crescentes em educação corporativa.
De uma forma geral, o que se quer é que aqueles recursos obtidos pelos nossos impostos sejam bem aplicados (e aqui está a alusão aos patinhos amarelos da figura em destaque neste post). Então isso vale para todo o sistema, desde quem entra pelas provas dos concursos até quem é escolhido para ficar, no estágio probatório. Este é justamente um elemento negligenciado no processo. https://www.youtube.com/watch?v=HgvtMGHzCNAO estágio probatório não pode ser um mero cumprimento de formalidade. Ele pode ajudar a barrar aqueles que não têm o perfil para o trabalho
Repensar completamente qual o perfil das pessoas que precisam entrar nos órgãos públicos para resolver os problemas complexos que aí se apresentam está na base de uma mudança significativa das nossas instituições. Talvez essa medida não garanta a solução dos problemas, mas, uma vez que tudo que é feito dentro de uma organização é feito por pessoas, tentar selecionar as melhores dentro da perspectiva do que precisa ser feito, pelo menos aumenta a chance de que isso ocorra. O crucial é definir mais criteriosamente quem vai entrar. Essa parece ser uma boa saída.
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