Gestáo

O que gestores devem aprender com um pouso em Marte?

Quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021, vimos mais um capítulo da história ser escrito, transmitido em tempo real. Quer dizer, quase tempo real, com uma defasagem de 11 minutos para as informações chegarem do planeta Marte até nós, aqui na Terra. A sonda Perseverance fez um pouso perfeito em Marte. E o que você, gestor ou gestora dos mais diversos tipos de negócios ou organizações, pode aprender com isso?

Fazia muito tempo que eu não escrevia por aqui, reflexo de um período afastado para terminar o doutorado e iniciar alguns projetos e, com isso, acabei deixando o A Tal da Gestão de lado. Porém, tive o estímulo que faltava para voltar a falar sobre temas que provoquem reflexões para uma gestão mais efetiva. O feito histórico da última quinta-feira não ganhou o devido destaque nos jornais, talvez até mesmo por muitas pessoas não se darem conta da complexidade e da façanha que é pousar um robô em outro planeta, depois de viajar quase 500 milhões de quilômetros, ao longo de quase 7 meses – e mais, com 90% de seu time trabalhando trabalhando em home office!

Assim como boa parte do mundo, a equipe do Mars rover está se esforçando em direção ao trabalho crítico da missão enquanto coloca a saúde e a segurança de seus colegas e comunidade em primeiro lugar.

How NASA’s Perseverance Mars Team Adjusted to Work in the Time of Coronavirus

Nem preciso entrar nos detalhes do que essa missão pode trazer de ganhos para a nossa espécie, pois há muita gente no meio científico repercutindo essa questão (veja por exemplo a série de lives nos canais do Planetário Ibirapuera e do Mensageiro Sideral). Sobre os custos, pouco a falar também. A missão Mars 2020 – Perseverance custou 2,7 bilhões de dólares, algo em torno de 15 bilhões de reais (hoje). Para efeitos de comparação, a Copa do Mundo de 2014 custou 25 bilhões de reais à época (cerca de 35 bilhões de reais em valores de hoje). O crucial para conseguir esse feito não está na gestão dos custos, nas planilhas, mas no que acontece por trás delas, realizado pelas pessoas.

Vale a pena ver um trecho da entrevista coletiva da NASA logo após o pouso, em especial a parte do Dr. Thomas Zurbuchen, que inclui a revisita ao emocionante instante do pouso, do minuto 36:44 ao 43:18.

Ele rasgou o plano de contingência, mas é graças à existência desse plano que a missão pôde ser bem sucedida. Discuto isso logo a seguir. É preciso ressaltar que aquele momento foi a primeira vez em meses que a equipe esteve na mesma sala. E, claro, destacar a seguinte frase dita por ele:

As três coisas mais importantes que criam sucesso no jogo – e isso também é válido para a NASA … e aqui vão as três, em ordem de prioridade: a equipe, a equipe e a equipe!

Thomas Zurbucher, Associate Administrator NASA

As pessoas é que fazem a diferença. É clichê e todo mundo fala. Mas a prática SEMPRE é diferente. O que mais, olhando de fora e sem aprofundar muito, poderíamos aprender com uma missão como essa? Sem querer esgotar as possibilidades, elenquei 7 pontos de atenção para quem sofre no dia a dia com ‘missões’ não tão ambiciosas quanto pousar em outro planeta para estudá-lo, mas que causam muito mais ansiedade.

1. Objetivo muito claro e pactuado. Todas as pessoas envolvidas têm clareza do que vai acontecer, o que se está buscando, qual o objetivo da missão. Lembrando que o objetivo não é chegar loucamente em Marte (já pousamos no planeta outras 8 vezes), mas realizar estudos específicos para perguntas bem definidas, por exemplo, será que houve algum tipo de vida em passado remoto naquele planeta?

2. Responsabilidades claras e confiança. As pessoas conseguem saber qual a sua contribuição e a importância dela. Quem pôde ver a transmissão do pouso da Perseverance notou que depois de realizado o pouso, outra equipe assumiu os postos na sala de controle. Era hora de começar a coletar as imagens, de processar as informações. Era hora de passar o bastão. E as pessoas da equipe confiam umas nas outras. Uma boa gestão deixa claro quem vai fazer o que e quando, o que se espera das pessoas e por que cada atuação é importante; e, principalmente, estabelece um clima de confiança entre todos.

3. Prioridades bem estabelecidas. Em um cenário de escassez de recursos (mesmo com alguns bilhões, não dá para fazer tudo) é sempre necessário fazer escolhas. Todas as pessoas envolvidas nesse incrível trabalho são informadas sobre o que é prioritário e o que vem depois. É também por isso que as missões têm prazo de validade. Chega um momento em que é muito custoso manter um time e recursos alocados indefinidamente para algo que já trouxe os resultados pretendidos.

4. Compromisso com o triângulo prazo-escopo-custo. Em missões espaciais como a Perseverance, o lançamento só é possível quando os planetas estão próximos o suficiente (a famosa janela de lançamento de poucos dias). Tudo precisa estar encadeado a partir da data de lançamento (30 de julho de 2020 para a Perseverance). E não estou dizendo que é uma boa ideia definir datas de lançamento (de produtos ou sites por exemplo) e vincular tudo a isso, pelo contrário. O compromisso com a qualidade e com a viabilidade da entrega (escopo) deve ser um princípio anterior ao pacto com a data. Por isso, missões espaciais são abortadas, não é mesmo? É o caso da ExoMars, cujo lançamento foi postergado em dois anos. Obviamente, o orçamento é uma parte importante nesse equilíbrio, como sempre preconiza a boa gestão de projetos.

5. Planejamento e riscos. Tenta-se pensar em absolutamente TUDO. Uma missão como essa é cara e muita coisa pode dar errado. Por esse motivo, o gerenciamento de riscos assume um papel primordial. Há backups e sistemas redundantes. O Plano B tem que ser muito bem estruturado. A máxima que aprendi quando organizava viagens de observação do céu, em cursos de astronomia, é “quanto melhor o plano B, menos você precisa dele” – e isso é muito bem simbolizado quando o Dr. Zurbuchen rasga o plano de contingência [minuto 37 do vídeo]. Parece bobo, mas é muito claro, pois quando você faz um plano B decentemente, você pensa em muitas coisas que podem dar errado e, dessa forma, prepara medidas de contingência e de mitigação para cada risco identificado. É o que coloca sondas em Marte e é o que deveria orientar nosso trabalho na Terra: dispor mais tempo para pensar e sair menos correndo para ‘apagar incêndios’. Dizem que se você tiver 20 minutos para cortar uma árvore, você deve gastar 15 minutos afiando o machado, o exemplo continua bom, mesmo se pensarmos que derrubar uma árvore é uma péssima ideia para os tempos atuais.

6. Comunicação. Nenhuma missão chega a Marte ou sai do solo terrestre apenas por que um chefe quer. A informação, desde a concepção e até o pouso, como vimos, precisar circular – e circular com eficiência. Todos os itens acima dependem de comunicação clara e precisa. Os 7 minutos de terror não têm esse nome por acaso, pois é o único momento da missão em que se está no “escuro”, sem informação. A missão Apollo 13 embora objetivamente possa ter sido considerada um fracasso, foi muito bem sucedida em trazer de volta todos os astronautas vivos para a Terra. Isso só foi possível porque havia gente trabalhando na Terra e se comunicando eficientemente com os tripulantes da capsula que não conseguiu cumprir o objetivo de pousar na Lua. Em momentos de crise, a comunicação é ainda mais necessária. Malcom Gladwell conta muito bem em seu livro Outlier e em uma palestra como a cultura pode afetar a comunicação e levar a quedas de aviões – e o que se precisa fazer para não mitigarmos as mensagens que precisam ser ditas.

7. Pessoas, pessoas e pessoas. Todo aparato tecnológico é fantástico. Mas ele não voa sozinho. Alguém precisa construí-lo, alguém precisa programá-lo ou escolher o algoritmo que vai guiar seu pouso. O filme Estrelas Além do Tempo ilustra muito bem essa questão, pois a despeito da tecnologia da época, as protagonistas da história é que calculavam as trajetórias dos módulos lunares. A tecnologia, as ferramentas não fazem nada sozinhas. Antes de usar o computador, Alan Turing precisou construí-lo a partir de uma ideia. Apesar de eu ter elencado como último item da lista, sem dúvida, é o fator mais importante. Nada justifica não investir tempo para as pessoas e não dispor recursos para que elas se desenvolvam. Nenhuma questão deve ser mais prioritária do que aquelas que se relacionem a integridade e o bem-estar das pessoas, afinal, sem seu engajamento, nada acontece.

Curiosamente (e propositalmente), esses pontos elencados são praticamente releituras dos 14 princípios definidos por Henri Fayol, escritos há mais de 100 anos, em sua obra Administração Industrial e Geral. Com as adaptações necessárias, as ideias centrais desses princípios funcionam tanto quanto as Leis de Newton para as viagens interplanetárias. Os gestores que querem alçar grandes voos (e realizar pousos memoráveis) precisam usar seu tempo com sabedoria. Dedicá-lo a estudar, a pensar e, principalmente, à equipe, à equipe e à equipe.

Ilustração da Mars Perseverance Rover pousando em Marte – Crédito: NASA/JPL-Caltech
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Como estou dirigindo?

Semana passada peguei a famigerada rodovia Regis Bittencourt para voltar da região sul para São Paulo. É um caminho que costumo pegar algumas vezes ao ano, desde 2004. Então já vi muito progresso nessa estrada, a BR116 entre São Paulo e Curitiba, que já foi chamada de “rodovia da morte”. Hoje ela está quase toda duplicada e tem sua administração feita por uma concessionária. Melhorou muito nesses anos, o que já a permitiria ser classificada como uma estrada apenas ruim.

Não vou focar na administração da rodovia em si, mas em outro exercício que é interessante de fazer quando dirigimos. Aliás, dirigir é uma palavra que se origina do latim, que significa “alinhar, tornar reto, guiar”. A palavra é formada pelo prefixo di (para fora, de divergência) e o verbo regere, que é o de “guiar, governar”, o mesmo que vem de rei e reinar (reger).

Por isso, também, não apenas se digire um carro, como também uma organização. Daí vêm diretor, diretriz, direção…

Pegar a estrada, para quem é observador, pode sempre trazer várias sacadas sobre o comportamento humano. Os anglófonos poderiam dizer que é insightful. O trânsito em geral é assim. Tenho um amigo que sempre me diz que a forma de dirigir revela muito sobre o caráter da pessoa.

E na estrada não é diferente. Mas quais analogias seriam possíveis entre a forma de digirir um veículo e a de dirigir uma organização?

Enquanto dirigia pela rodovia, fui observando o comportamento dos motoristas e pensando neste post. Não é difícil ter ideias, ainda mais quando se está acostumado a fazer viagens longas, passando por diversos tipos de estradas: retas, curvas, serras, simples, duplicadas e complicadas. Sem falar que é perceptível o impacto da gestão sobre as condições gerais da rodovia (e quem já dirigiu na BR116 e em rodovias do estado de São Paulo como a Castello Branco, Bandeirantes e Ayrton Senna sabe do que estou falando – mas esse é assunto para outra oportunidade).

Fiz, então, uma pequena lista, que está longe de ter a pretensão de ser exaustiva, mas que pode ser cheia de sacadas (ou insightful) para quem gosta de pensar sobre a gestão. São comportamentos dos maus condutores que têm analogia com o comportamento dos maus gestores. Então vamos a ela:

O mau motorista (e o mau gestor):

  • Não usa seta: O mau motorista não se importa com os outros, então não se preocupa em sinalizar o que vai fazer.
    Analogamente, o mau gestor não informa os outros e sua equipe sobre o que se passa em sua cabeça e apenas distribui ordens que soam sem sentido para todos que estão em volta. É extremamente auto-centrado.
  • Não usa os retrovisores e ignora as indicações do painel: da mesma forma, o mau motorista parece estar nem aí para os outros e tende a ignorar informações valiosas que estão ali disponíveis, para que ele possa conduzir melhor no trânsito e entender o que está acontecendo com seu veículo.
    O mau gestor é assim também. Não quer ter o trabalho de usar indicadores sobre o que acontece à sua volta e na organização. Acha perda de tempo entender o que aconteceu no passado e só se preocupa em olhar para frente (às vezes com discursos bem trabalhados sob o pretexto do pragmatismo). O nível de aprendizado com as experiências é muito baixo.
  • Não se coloca no lugar do outro: quanto toma uma “fechada” de um caminhão que quer ultrapassar outro veículo mais lento, apenas xinga e reclama de seus segundos perdidos, pois é incapaz de perceber que se o caminhoneiro não ultrapassar naquele ponto, vai perder muitos minutos, enquanto o motorista no seu carro pode recuperar os segundos de atraso rapidamente.
    O mau gestor não pratica empatia, não percebe nem respeita as diferenças e limitações individuais. Acredita que todos podem fazer aquilo que ele quer (em geral do jeito dele – que ele enxerga como único jeito certo de fazer as coisas).
  • É o “dono da esquerda”: ele desconhece a regra básica de que a faixa esquerda deve ser sempre deixada livre, para ultrapassagens. Acredita que, desde que esteja na velocidade da via, não deve dar passagem a ninguém, forçando manobras arriscadas, que causam muitos acidentes.
    Da mesma forma, o mau gestor olha apenas para as prioridades dele e da área dele. Ele ignora a empresa como um todo e vive, mesmo sem ter a intenção, fomentando guerras internas entre os departamentos: “esse problema não é nosso, é da logística”. Ele não gosta de “dar passagem” e fica “bloqueando” qualquer um que pense mais rápido do que ele.
  • Tem conhecimento limitado da sinalização (principalmente da horizontal): o mau motorista acha que digirir é apenas tocar o carro em frente. Ele não respeita a sinalização, por ma fé, ou por ignorância mesmo. Não sabe que a faixa contínua não pode ser cruzada nas curvas da serra, não diminui a velocidade em áreas urbanas (mas xinga quando colocam lombadas para conter a velocidade).
    O mau gestor também é assim. Estuda pouco e acha que sabe tudo. Ele tende a ignorar os sinais que a organização, o mercado e as pessoas dão sobre suas atitudes, por má fé ou por ignorância mesmo.
  • Dirige com velocidade inconstante: sua condução depende do humor do momento. Em vez de estabelecer um ritmo para a viagem, em determinados momentos está correndo como um louco e em outros está devagar, atrapalhando quem vem atrás.
    O mau gestor é intempestivo e cria na equipe uma sensação de “será que ele(a) tá de bom humor hoje?”. Ele dita ritmos contraditórios. Pede uma tarefa e em seguida pede uma segunda coisa mais prioritária. Mais tarde, ele cobra a primeira tarefa, como se não tivesse dito que a segunda era a prioridade do dia. Muitas vezes, quando é necessária sua decisão, ele vai devagar quase parando, atrapalhando outras áreas da organização que dependem de agilidade.
  • Reclama da mudança nas regras e da fiscalização: o mau condutor acha um problema ter que acender o farol baixo mesmo de dia. Só pensa em si e ignora o fato de a regra primar por aumentar a sua visibilidade para os outros, reduzindo riscos de acidentes. Quando toma uma multa, ele coloca a culpa no governo (federal, estadual ou municipal, dependendo da rodovia ou via em que trafega) e não no seu comportamento inadequado.
    Para o mau gestor, as regras e controle servem apenas para atrapalhá-lo. Ele atribui culpa sempre a um fator externo (o que indica sua baixa compreensão sobre o sistema em que está inserido) e nunca ao impacto de suas ações (às vezes no longo prazo).
  • Ultrapassa em local proibido: essa é autoexplicativa.
    O mau gestor também é individualista, às vezes imprudente, só porque “está com pressa”. Acaba colocando a organização e os outros em risco porque pensa apenas nos seus objetivos.
  • Usa o celular enquanto dirige: o mau motorista não pode abrir mão da sua “conectividade”, mesmo que isso signifique colocar a si e aos outros em situações de risco (já se sabe que mandar mensagens de texto no volante é tão ou mais nocivo do que dirigir bebado).
    O mau gestor também é desatento e às vezes faz exatamente o mesmo que o mau motorista, fica com o celular no colo respondendo mensagens durante as reuniões ou em conversas com a equipe. Isso mostra, novamente, uma baixa preocupação com os outros.

 

Daria para continuar essa lista com inúmeros exemplos, mas já dá para ilustrar o ponto. Se você tem outros, deixe aí nos comentários.

Resumidamente, a má gestão, tal qual a má condução, se fundamenta, aparentemente, em três fatores: (1) Individualismo e baixa consideração com os outros; (2) Baixo preparo e problemas de formação e (3) falta de compromisso.

Se formos olhar atentamente, o primeiro fator nada mais é do que reflexo da (falta de) educação de base (aquela que vem de casa e dos primeiros anos na escola). O segundo se fundamenta na formação específica (faculdade) e o preparo ao longo da trajetória de gestão, que deve não só considerar se a pessoa tem o perfil para gerir uma equipe, como também  se ela tem a maturidade para liderar outras pessoas.

A falta de compromisso, o terceiro fator, é um problema sério. Não que o mau gestor não esteja nem aí com nada, mas, muitas vezes, não faz um pacto real para que a gestão seja boa e, consequentemente, a organização e as pessoas que ali estão progridam (e, no fim das contas, a sociedade melhore).

Esse são aspectos que já abordei em outras oportunidades, tanto nos casos de sucesso da Islândia e da Alemanha no futebol, como também nas razões para explicar a ineficiência generalizada em nosso país.

Muitas vezes, as organizações tentam desenvolver seus gestores com programas educacionais mirabolantes (às vezes muito caros e puramente focados na sala de aula) e esquecem que deveriam estar atentas a outros aspectos, principalmente relacionados a entrada de novas pessoas na organização e, ainda mais importante, nos critérios utilizados para a promoção ao nível de gestor.

Aprender a gerir é como aprender a dirigir, só dá para saber na prática se a pessoa apredeu. Não há prova ou sala de aula capaz de responder à velha questão que vem escrita atrás de muitos veículos: “como estou dirigindo?”. É só o dia a dia na gestão (e no volante) que vai responder. Mas os indícios de uma má gestão são evidentes, como é óbvio quando motorista da frente não sabe o que está fazendo ou está fazendo mal o que deveria saber fazer.

Porém, o começo da boa gestão é o que já venho falando há tempos: educação de base, formação de gestores (e de quem os prepara) e compromisso de todos. Não tem segredo. mas é preciso começar em algum momento.

 

 

Ladeira abaixo

Eu me lembro de um professor de História que tive no colégio que usava uma versão um pouco mais suave de uma frase célebre que se usa muito ao se falar de política no Brasil. Colocando sua mão esquerda com a palma para cima, como se estivesse segurando um objeto imaginário, ele falava: “A base é a mesma! Só mudam as moscas…”, enquanto, com a mão direita, representava as mosquinhas voando sobre a ‘base’, palavra em que ele colocava muita ênfase ao falar.

Não tive como não me lembrar do professor Sérgio depois de ver o jogo da seleção brasileira de futebol ontem à noite. Mesmo que tenha sido um gol irregular a selar a derrota para o fraco Peru, não dá para apagar o papelão (mais um) de um país que até outro dia era uma das referências no futebol. Onde quer que a seleção jogasse, haveria muita expectativa de bons jogos.

Ironicamente, no jogo seguinte a um 7×1 (contra um fraquíssimo Haiti), mais um vexame. O Brasil ficou fora da primeira fase da Copa América Centenário em um grupo em que se classificaram Peru e Equador. Isso só tinha acontecido em 1987. Semelhante a essa época, era um fundo do poço do nosso futebol, antes do ressurgimento, em 1994. Diferente dessa época é que agora parece ser muito mais difícil enxergar uma luz no fim do túnel.

Mal acabou o jogo e as mesas redondas estavam alvoroçadas discutindo quem deveria ser o próximo técnico da seleção, no lugar do questionado Dunga.

Resumir os problemas de uma decadência notória ao técnico do time – e é bem verdade que há cada vez menos gente fazendo isso – é análogo a achar que melhorar a gestão de uma equipe ou de uma empresa se resolve trocando o gestor.

Às vezes resolve, é verdade. Mas é preciso uma análise atenta para identificar se o gestor é a causa do problema (ou um dos principais fatores) ou se vai ser só mais uma mosquinha trocada sobre a ‘base’, como dizia meu professor.

Como sempre defendo, é preciso olhar para as questões de gestão do ponto de vista sistêmico. E no futebol não é diferente. Como já discuti no caso do Leicester, campeão inglês, o técnico é um dos participantes da gestão de um projeto de um time vencedor. Mas existem também inúmeros fatores inter-relacionados. O desafio é separar os fatores mais relevantes em cada situação. Além de sistêmica, a boa gestão é contingencial.

 

O Futebol é um mero estrato da sociedade

O livro de Maurício Murad, Para entender a violência no futebol, apresenta a ideia de que o futebol não é uma entidade à parte, em que o que ali acontece nada tem a ver com o restante da sociedade. Diz o autor “o futebol acaba expressando a violência geral da sociedade. Então, aumentando a violência geral na sociedade, ela tende a aumentar também no futebol“.

Com a gestão é a mesma coisa. Se a gestão do futebol vai mal é por que no restante da nossa sociedade ela também está descendo a ladeira.

Exemplos? Não faltam… O país vem há um bom tempo figurando em posições medíocres ou na parte de baixo de diferentes classificações nas mais diversas áreas, em comparação com outros países. Isso sem falar nos péssimos serviços que as empresas nos prestam, que já foi assunto de outro post.

Em educação já é sabido que vamos mal. O Brasil é o 60º colocado em um ranking de 76 países quando se foca o benefício econômico da educação. E é o penúltimo em um ranking de 36 países que relaciona os resultados do PISA, anos de estudo e percentual da população com nível superior.

Aparecemos em último lugar no ranking sobre eficência em saúde. E ainda somos apenas o 75º colocado no Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH.

Aquela tida como nossa melhor universidade, vem despencando ano após ano nos rankings mundiais. A produção científica brasileira, embora cresça em quantidade, continua com um impacto medíocre. Os investimentos são muito baixos e quando ocorrem são ineficientes.

Esse é um desempenho incompatível com riqueza e o tamanho do país. Estamos (ainda) entre as 10 maiores economias do mundo.

O esporte é, portanto, apenas uma representação do problema em dimensão menor. Não temos mais campeões na Fórmula 1. Não temos desempenhos consistentes na maioria das modalidades. Quando muito, aparecem alguns talentos isolados, como o Guga Kuerten no tênis, o Artur Zanetti nas argolas, Gustavo Borges na natação, ou o Gabriel Medina no surfe.

Parece que não sabemos como aproveitar a onda positiva que esses talentos trazem. E suas histórias viram apenas exemplos de como eles superaram as condições adversas com muito empenho e talento nato. E ficamos esperando esse talento aparecer nas mais diversas áreas, dentro e fora do esporte.

E em cada segmento os especialistas enumeram os problemas e fazem suas análises de forma isolada. Os sintomas estão em todos os lugares, para quem quiser ver.

 

Má gestão: um problema sistêmico

Costumo sempre insistir na ideia de que a boa gestão é sistêmica. A falta de pensamento sistêmico parece estar na base desse problema que gera uma insatisfação generalizada, principalmente quando a seleção brasileira dá vexame.

Os comentaristas esportivos bradam por mudanças no futebol. Sabem que muito precisa ser mudado. Citam o exemplo da Alemanha, que trabalhou 12 anos para conquistar a Copa do Mundo aqui na nossa casa, após nos humilhar com o tão falado 7×1. Mas depois reduzem sua discussão ao nome do próximo técnico: Tite, Cuca, Guardiola…

Vale a pena ver uma reportagem que conta como a Alemanha trabalhou de maneira sistêmica para reformular o futebol:

A diferença é que, nesse exemplo, pode-se ver como a Alemanha mexeu na base (em todos os sentidos) e não trocou apenas as moscas. Isso é bem mais difícil de fazer e envolve atacar as causas e não os sintomas. Pressupõe, talvez, uma certa dose de dor. É mexer com as crenças e valores, com aquilo que está enraizado e instituído.

E a base da gestão? Realmente acreditamos que gestores se formam em cursos de administração? Grande parte dos gestores nas organizações não é formada em administração – o que, no meu entender, está longe de ser um problema. Para entender isso, é preciso olhar para os tipos de curso de administração que existem.

A maior parte deles está voltada à mera formação de mão-de-obra. Embora tenham diploma de administradores, os formados dificilmente vão desempenhar uma função de gestão, tendo sua atuação limitada a trabalhos administrativos dentro das organizações.

Do outro lado estariam os cursos “de ponta”, que, teoricamente, deveriam formar as pessoas que seriam capazes de trasformar a gestão das organizações e, em algum grau, a sociedade.

No entanto, não parecem ser esses cursos formadores dessas pessoas. Quando elas aparecem, a impressão é de que já vieram assim e não se deixaram “estragar” pela faculdade – são os Gugas e os Medinas do mundo corporativo. Os demais parecem estar mais preocupados em alcançar altos cargos, em busca de dinheiro, status e poder, aspectos valorizados pela chamada Nova Classe Média, descrita pelo sociólogo Wright Mills, em seu livro de 1951.

Estamos diante, talvez, de uma geração de gestores que frequentou universidades e bons cursos, mas que estudou muito pouco. Por esse motivo há quem diga que no Brasil temos muitos alunos, mas pouquíssimos estudantes.

Assim, para melhorar a gestão, precisamos fazer como a Alemanha, que investiu na base e na formação de treinadores. Assim, a base – de verdade e como o nome sugere – é a educação básica. Precisamos de mais estudantes e menos alunos. E os treinadores são os professores.

Para isso, é necessário superar nossa tendência de querer igualar as condições apenas na chegada, a ideia de Meritocracia à Brasileira, discutida pela antropóloga Lívia Barbosa e que citei no post em que exploro algumas das razões da nossa ineficiência. Colocar todo mundo na faculdade não resolve. Tampouco formar mais doutores.

O processo se inicia muito antes: com as crianças. Não à toa, as sociedades ditas mais desenvolvidas e invejadas por nós, os escandinavos, entenderam o papel de cuidar bem das crianças no comecinho de suas vidas. Esse é um aspecto crucial para formar cidadãos melhores. Por isso há licença maternidade de dois anos (somando-se a da mãe e do pai). Por isso a educação básica recebe tantos investimentos. O sistema é diferente.

 

 

 

Mudar a base, ou seja, o sistema

Para fazer mudanças substanciais é preciso compreender o sistema em que estamos inseridos e fazer as perguntas certas. Aproveito para resumir as características de sistemas, conforme destaca o professor do MIT, John Sterman, em seu livro Business Dynamics, na adaptação do livro Desvendando Sistemas, do meu amigo João Arantes:

  • São dinâmicos: ou seja, mudam de estado com o tempo.
  • São altamente acoplados: As partes estão conectadas entre si e interagem fortemente.
  • São governados por retroalimentação: as ações tomadas por um agente tem repercussões que podem influenciar aquele que as tomou.
  • Não linearidade pode estar presente: o efeito pode ser desproporcional à causa.
  • O estado atual de um sistema depende dos estados anteriores: as ações tomadas no passado podem influenciar o estado atual do sistema.
  • A estrutura interna do sistema determina o seu comportamento: a forma como os diversos subsistemas estão ligados determina como o sistema se comportará.
  • O comportamento de sistemas pode ser contra-intuitivo: O resultado de uma ação realizada pode trazer resultados opostos aos esperados.
  • A complexidade dos sistemas pode superar a nossa capacidade de entendê-los: temos dificuldade de entender as relações entre causa e efeito, ainda mais quando há distância temporal entre uma coisa e outra.
  • As respostas de curto prazo de um sistema a uma intervenção podem diferir substancialmente das respostas de longo prazo: ações de curto prazo podem trazer benefícios iniciais e malefícios de longo prazo, e vice-versa.

 

A gestão competente é aquela que é capaz de mexer no sistema. Só que para mexer no sistema é preciso entendê-lo e, antes disso, ter um mínimo de pensamento sistêmico, que só vem com um intenso trabalho desde a base. Caso contrário, continuaremos trocando só as moscas – e ladeira abaixo.

 

 

 

 

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