Quando estive na Islândia, no começo de 2012, nem imaginava que eles estavam no início da jornada que culminou com a classificação de sua seleção de futebol entre as oito melhores da Europa. E não dizem que a Eurocopa é uma Copa do Mundo sem Brasil e Argentina ? (e sejamos justos, talvez, hoje, Uruguai e Chile façam até mais por merecer a lembrança do que nossa própria seleção). Então, o que fizeram os jogadores desse país gelado não foi pouco.
Já fiz a minha homenagem a eles em outro espaço, sobre o o dia em que quisemos ser islandeses, achando que não teria nada para falar sobre gestão nesse caso. Porém, ao me aprofundar um pouco, vi que, sim, novamente, tem tudo a ver.
Eu gosto de usar o futebol para trazer exemplos da gestão, como já fiz quando analisei o título inglês do Leicester City, pois o que acontece nesse esporte tão popular acaba sendo reflexo de como uma sociedade resolve seus problemas. Não à toa vemos o desempenho da seleção brasileira descendo a ladeira em competições importantes.
País surpreendente

Harpa, Reykjavik Concert Hall and Conference Centre, em Reykjavík, capital da Islândia.
A Islândia é um país singular. Anos atrás, talvez, fosse conhecido apenas por ser o país de origem da cantora Björk. Anos mais tarde entrou novamente nos noticiários por ter quase ido à bancarrota na crise de 2008 e por causa daquele vulcão de nome impronunciável que entrou em erupção e atrapalhou todo tráfego aéreo na Europa e na América do Norte nos idos de 2009 e 2010 (para os curiosos, seu nome é Eyjafjallajökull, palavra que é composta por outras três: ilha-montanha-geleira, mas que significa algo como “a geleira no topo das montanhas de onde dá para ver as ilhas”. Incrível, não?).
Mais recentemente e mais notável até, foi a exposição devido à citação de seu Primeiro Ministro no caso dos Panama Papers. Como é esperado em qualquer lugar sério, as suspeitas que recaem sobre uma figura pública com funções tão importantes na condução do país foram suficientes para sua renúncia.
Mas o que me levou lá foi a possibilidade de ver auroras boreais, o que não foi possível por causa da condições meteorológicas. Só consegui ter sucesso nessa missão no ano seguinte, em outro lugar fantástico, Tromsø, na Noruega. Mas passear pela capital islandesa, Reykjavik, é muito legal. E ainda pude ter gratas surpresas quanto à qualidade dos serviços, principalmente no hotel em que fiquei hospedado, e pelo nível de educação do povo. Há um intenso circuito cultural na cidade, com museus sobre diversos assuntos e o fantástico Harpa Concert Hall.
A gestão islandesa, que é muito calorosa, explica muito do sucesso que obtiveram no futebol. Como já disse, é um feito notável. Ainda mais para um país com cerca de 330 mil habitantes (uma população equivalente a municípios como Franca-SP e Blumenau-SC) e que, no futebol, até ontem era considerado garantia de 3 pontos para qualquer adversário que os enfrentasse.
Podem ir mais longe nessa Eurocopa? Podem. Mas é extremamente improvável. A essa altura, o técnico da França, Didier Deschamps, está analisando as vulnerabilidades de seu próximo adversário (e que não são poucas, mas superadas com muito espírito de luta – compromisso – e trabalho coletivo – integração, não só entre os jogadores), estudando todas as formas para fazer valer a força de jogar em casa. Ficar entre os oito melhores já é motivo para todo reconhecimento possível (o que para seu próximo adversário, a França, seria um retumbante fracasso). Mas, como talvez o mundo todo (exceto os franceses, é claro), estarei torcendo para que o selecionado islandês avance na Eurocopa.
O Fator CLIQ

PARIS, FRANÇA – 22/06/2016: O jogador Aleksandar Dragovic, da Áustria, chuta o pênalti na trave no jogo da UEFA EURO 2016 pelo Grupo F entre Islândia e Áustria. (Photo by Paul Gilham/Getty Images)
No esporte às vezes vemos fenômenos como esses acontecerem. Parece que, de repente, o time dá um estalo e começa a vencer. Vitórias impossíveis, gols, cestas ou pontos “achados”, a bola do adversário bate trave, chora e não cai, vai para fora. Tudo parece conspirar para o título. Isso aconteceu com a Grécia, na Eurocopa de 2004 e parece se repetir em alguns campeonatos brasileiros, naquele momento em que se olha para o time e parece que não há força capaz de conter o ímpeto da arrancada rumo ao título.
O professor Moacir Carlos Sampaio, da Fundação Dom Cabral, costuma expor em suas aulas os ingredientes presentes nas equipes vencedoras. Aquele estalo rumo ao título é o que ele chama de “Fator CLIQ”, um acrônimo para os quatro aspectos que, reunidos, contribuem para o sucesso de qualquer equipe, no esporte ou nas organizações: Compromisso, Liderança, Integração e Qualidade.
Se olharmos para essa equipe, veremos esses fatores presentes, em maior ou menos grau. Talvez, só não consigam ir mais longe por esbarrarem, principalmente, no problema da falta de qualidade individual. Os jogadores da Islândia atuam, em sua maioria, em clubes secundários de diferentes torneios ao redor do mundo.
E a liderança é compartilhada. Porém, o líder “principal” da equipe, o experiente técnico sueco Lars Lagerbäck, sabe o quão dependente sua equipe (staff) é do líder e reconhece que se trata de um trabalho em equipe em todas as esferas. Ele diz que o fato de ele ser o líder é uma mera formalidade: “não se consegue trabalhar sem uma boa equipe (staff)”.
Dentre os jogadores, também há personagens que desempenham importantes papéis. A “estrela” é o camisa 10, Sigurdsson – o cérebro do time, mas que exalta justamente o fato de funcionarem bem como uma equipe (e que joga junta desde as categorias de base). O capitão, Aron Gunnarsson, é o “carregador de piano”, aquele que mais marca e rouba bolas – o coração do time.
Investir no lugar certo

PARIS, FRANÇA, 22/06/2016: O jogador Skúlason comemora a vitória por 2×1 conta a Inglaterra com sua filha no jogo pelas oitava-de-final da UEFA EURO 2016 (Photo by Shaun Botterill/Getty Images).
Mas o que há de tão notável na gestão do futebol islandês?
Simples. Investiram nos lugares certos e deram tempo para que os resultados começassem a aparecer. Como disse o capitão Gunnarson – que atua no Cardiff City, um clube da segunda divisão inglesa – o que os motiva é o espírito viking. Em suas próprias palavras, “somos um pouco loucos e acreditamos que podemos fazer qualquer coisa”.
Pois a equipe se classificou para a Eurocopa em um grupo que tinha Holanda, República Checa e Turquia, seleções muito mais tradicionais no cenário do futebol mundial. Inclusive venceram a Holanda duas vezes, uma delas em Amsterdã. No ranking da FIFA, subiram da posição 130 para 23. E aposto com vocês que vão subir mais (o Brasil que se cuide!).
No início dos anos 2000, os islandeses, apaixonados por futebol, perceberam que não iriam a lugar algum se continuassem com seus campos de pedra e gelo, resultado do rigoroso inverno durante 7 ou 8 meses do ano. Então, construíram sete centros de futebol, cobertos e climatizados, capazes de funcionar o ano todo. E investiram em mais 150 campos de futebol com aquecimento sob o solo. E tudo feito com recursos públicos!
Só que como são gestores responsáveis, os islandeses já sabem que não basta construir estruturas e que o que move qualquer projeto – seja de nação, seja numa modalidade esportiva – são as pessoas. Assim, investiram pesadamente, como diz o documentário sobre a classificação da Islândia para Eurocopa 2016, cujo vídeo está abaixo, na formação de um batalhão de treinadores.
Para se ter uma ideia, em 2016 haviam formado 600 novos treinadores, que representa um treinador para cada 550 habitantes. Na Inglaterra, para se ter uma noção comparativa, essa proporção de é 1 para 11 mil. Ou seja, como já discuti quando falei do sucesso da Alemanha na Copa de 2014, a solução, além de sistêmica, privilegia o desenvolvimento daqueles que serão os responsáveis pela formação dos talentos.
O segundo treinador, Heimir Hallgrímsson, que também é dentista se preparou para a função: está há 4 anos na equipe principal, mas antes, passou 5 anos treinando o time feminino e 5 anos treinando as categorias de base. Após a Eurocopa ele assumirá a função de técnico principal.
Hallgrimsson exalta a maneira como os islandeses se envolveram com o futebol: “O que é fantástico sobre essa equipe é que eles mudaram os outros ao redor deles, que começaram a usar a camisa da seleção e a cantar o hino nacional”. Ou seja, de alguma forma conseguiram o compromisso de todos, cada um contribuindo da sua melhor maneira.
Se pararmos para pensar, foi exatamente o mesmo processo observado na revolução educacional da Coreia do Sul e também de outros países como China e Finlândia. O investimento vai, basicamente, para dois lugares: crianças e professores (no futebol, treinadores). Além disso, consegue-se o compromisso de todos. No caso desses países, o compromisso da comunidade em torno das escolas e também da sociedade como um todo.
Duglegur e o tripé do sucesso
Então, resumindo, o desenvolvimento de um projeto que envolva a transformação de uma situação que parece estar perdida se pauta pelo seguinte tripé:
- Investimento na base – A pressa pelo resultado é substituída pela pressa em investir no lugar certo, ou seja, nas crianças. O foco é o longo prazo e a preocupação dos governantes ou líderes é apenas com o sucesso do projeto e não com a manutenção do poder.
- Formação de professores/treinadores – Mais do que em estrutura física, os investimentos devem ser feitos nas pessoas. Não é possível desenvolver o potencial das crianças sem profissionais preparados. A preocupação dos governantes ou líderes é com a qualidade de quem é formado e nas condições para que esses profissionais possam atuar plenamente, e não apenas com índices quantitativos vagos.
- Compromisso de todos – a competência está em desenvolver um senso de que esse é o caminho certo. Pouco a pouco, as pessoas se engajam e defendem o projeto como se fosse delas (e de fato passa a ser). A preocupação dos governantes e líderes é com a melhora da condição de forma geral e não com os privilégios de uns poucos amigos ou com o reconhecimento individual.
Os islandeses possuem até uma palavra de difícil tradução para representar o que fizeram no futebol (e se for pensar, no país inteiro, pois se reconstruíram após praticamente quebrarem, em 2008. E como digo e repito, o futebol é só um estrato da sociedade). A palavra é essa que está no título: Duglegur.
Duglegur quer dizer algo como ‘diligente’ ou ‘trabalho duro’. Mas também pode significar ‘durável’, ‘vigoroso’ ou simplesmente ‘bem feito’ (na conotação positiva, claro).
Duglegur porque reconhece que não há soluções mágicas e, em um dado momento, é hora de arregaçar as mangas, trabalhar duro, parar de reclamar e começar a fazer. Não é problema de outro, não é problema das gerações futuras. Duglegur por que se volta ao longo prazo, em busca de soluções duráveis, com muito vigor. E duglegur, porque com o compromisso de todos (muito mais do que num mero slogan) mostra que dá para fazer bem feito.
Embed from Getty Images