Pensamento encaixotado

Essa eu presenciei… Na reunião de equipe, em uma manhã de quarta-feira típica, o chefe começa a papagaiar o discurso que ouviu dos seus superiores na reunião do dia anterior: “Sinto que vocês trabalham muito isolados, cada um em seu canto. Precisamos trabalhar mais em equipe. Quero ver vocês juntos, discutindo ideias. Duas cabeças sempre pensam melhor do que uma. O importante agora é funcionarmos mais como equipe e não como indivíduos isolados”.

Essa era uma prática comum desse gestor. Ele simplesmente ouvia o chefe dele e o diretor da área falarem alguma coisa e já alinhava o seu discurso. Parecia que sua preocupação era meramente repetir o que ouvia, passando toda a responsabilidade para os “idiotas dos subordinados”, sem se preocupar em criar o mínimo de condições para que o discurso fosse colocado em prática.

Dois dias depois, na sexta-feira à tarde, não deu outra. Duas pessoas da equipe estavam sentadas lado a lado, em frente ao computador de uma delas. Um rabiscava algumas coisas no papel e comentava. O outro dava alguns cliques no mouse, digitava algo no teclado e perguntava ao primeiro se estava bom. Essa não era uma prática comum na área, afinal, o chefe tinha razão, as pessoas trabalhavam muito isoladas, sozinhas.

Até que, dali cerca de meia hora, o chefe volta de uma reunião e passa pela mesa em que os dois trabalhavam. Sua cara de espanto foi perceptível. E então solta a pergunta: “o que vocês estão fazendo?”. A resposta de um deles foi: “estamos preparando aquela apresentação que você me pediu para segunda-feira”. E aí vem a pérola do chefe, um tanto indignado: “Mas precisa de dois caras pra fazer isso?!”. E foi o fim do trabalho em equipe naquela área.

Esse tipo de ocorrência é bastante comum. Muitos gestores não se dão conta de como simples comentários podem induzir (para o bem e para o mal) o comportamento da equipe. O gestor desse episódio era craque em ler ou ouvir alguma coisa e papagaiar, sem crítica, para a equipe, esperando que o simples fato de comentar sobre o quão interessante era aquilo que tinha visto era o suficiente para que as coisas acontecessem, magicamente.

Muitas vezes, as falas levavam mesmo a ações. Mas sem o devido acompanhamento e, principalmente, sem crítica por parte do gestor, pouco tempo depois, as ações não eram bem as pretendidas pelo discurso. Não é nada fácil colocar o discurso em prática, principalmente o discurso de colocar o discurso em prática.

Talvez, por isso, me venha à mente uma frase do general George S. Patton que revi esses dias, mencionada pelo diretor de uma empresa em que eu fazia um trabalho de consultoria:

Comandantes fracassados dão ordens e depois retornam ao seu jogo de cartas no quartel-general. Eles acreditam que o simples ato de dar uma ordem fará com que tudo se arranje e que a batalha esteja ganha. Eles esperam que tudo ocorra exatamente de acordo com seus planos. Isso é tão irreal quanto estúpido. Um comandante de sucesso dá uma ordem e depois se certifica de que, além de ser cumprida, ela está gerando resultados planejados. Se as coisas derem errado ou a situação mudar, o comandante logo saberá e poderá reagir dando novas orientações. Não tire conclusões precipitadas nem pressuponha nada. Faça o acompanhamento de tudo.

O que ele está pedindo nada mais é do que um pensamento crítico, o famoso “pensar fora da caixa”, tão falado quanto batido.

E quem já não teve um chefe desse tipo? Faz o discurso e espera que as coisas aconteçam magicamente. E quando as coisas dão errado, atribui-se culpa aos que estão embaixo. Isso vale não só para discursos pontuais, como os do gestor do início do post, mas também para planos e estratégias criados pela cúpula de uma organização. O problema sempre são os “idiotas” dos funcionários, incapazes de compreender o que precisa ser feito, que não pensam “fora da caixa”.

No livro Safári de Estratégia, Henry Mintzberg é bem irônico em um comentário, ao exemplificar o que acontece quando uma estratégia fracassa:

“Se vocês, idiotas, dessem valor à bela estratégia que formulamos…”

Ao passo que os níveis mais baixos poderiam responder:

“Se vocês são tão espertos, por que não levaram em conta o fato de que somos idiotas?”

Sem contar a ironia que é o fato de, em geral, a estratégia formulada vir dentro de uma ‘caixa’, os slides de PowerPoint, o formato predominante para as apresentações no mundo corporativo.

E como diz o professor Clovis de Barros Filho, ao citar essa “tara” organizacional por apresentações de PowerPoint, a caixa ou o quadrado para se colocar ideias, “e sabe o que cabe num quadrado? Certezas. A dúvida não entra no quadrado. Pode pensar. Porque a dúvida pressupõe resposta e, portanto, pressupõe que o quadrado esteja aberto de um lado”.

Mas dizer que as pessoas devem “pensar fora da caixa” é o discurso preferido. O chefe do discurso do trabalho em equipe adorava essa: “vocês precisam pensar fora da caixa”. Mas não percebia o quanto até esse discurso já estava encaixotado.

Outra que ele adorava, ao chamar um subordinado para uma conversa sobre qualquer assunto de interesse da empresa, era: “Isso aqui é uma troca de ideias. Você vem com a sua e vai embora com a minha”. Era brincadeira, é óbvio. Mas, como dizem, toda brincadeira tem um fundinho de verdade, não é mesmo? E na dele não era um fundinho, era um abismo de verdade.

Ele realmente acreditava que os subordinados eram idiotas. Mas experimente pensar fora da caixa para ver como ele reage. Não há nem estrutura mental para lidar com isso – e esse é o caso típico, infelizmente. Mais fácil rotular o ‘pobre’ funcionário como “desajustado”, “não aguentou a pressão” etc. E não sou só eu que falo isso. Veja o sensacional vídeo do prórpio professor Clovis de Barros Filho:

O professor Clovis termina sua exposição com o seguinte questionamento “O que se espera da estrutura empresarial? A legitimação do que já é consagrado, a reprodução do que já se sabe e assim por diante”.

Esse é um ponto bem importante, pois, ironicamente, o mesmo sistema que pede o “pensamento fora da caixa”, isto é, a inovação, o pensar em coisas que não foram pensadas, é aquele que cobra o ajuste à caixa. Ideias muito “fora da caixa” são taxadas de inadequadas, de pouco pragmáticas.

Então, é preciso tomar cuidado com certos discursos. Quando pedirem resiliência (que é, em física, a capacidade de um material voltar à sua forma original após ser submetido a pressão, por exemplo), pode ser que queiram apenas que você seja joão bobo, que toma pancadas e volta ‘sorrindo’ para a posição original. Quando quiserem que você tenha o “pensamento de dono”, pode ser que queiram apenas que você defenda os interesses da empresa e abra mão dos seus, em nome de algum bônus ou benefício. Se querem que você seja o “empreendedor interno” (ou o intrapreneur) é para que você use suas ideias para se manter na caixa e continue desconhecendo sua exterioridade. Pois se você tiver um espírito genuinamente empreendedor, não demorará a querer sair da caixa.

Assim, transformar organizações pela gestão é, muitas vezes, fazer o oposto do que se espera. Em vez de aprender a fazer o que todo mundo faz, deve-se desenvolver durante a formação ou já na prática como gestor o espírito para discutir a pertinência do que é feito, do que é consagrado. É daí que vêm as novas saídas, aquilo que ninguém tinha pensado.

 

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