Em um curso que fiz na Universidade de Estocolmo, faz alguns anos, o professor, que tinha opiniões um tanto excêntricas sobre alguns conceitos clássicos do marketing B2B, fez um comentário inusitado sobre seu país de origem. Foi algo como: “Aqui na Suécia as coisas são assim: se os políticos não ‘andarem na linha’, se não defenderem os interesses dos contribuintes, nós vamos para a rua e quebramos tudo!”.
Vários alunos (alguns de forma indignada), que vinham de diversas partes do mundo, questionaram e trouxeram evidências de que não era assim, de que o povo sueco era muito educado e civilizado. Os parlamentares suecos são mundialmente famosos por não ter mordomias (veja o vídeo) e não se tinham notícias de barbáries como a da fala dele acontecendo há muito tempo naquele país.
A resposta dele não podia ser mais simples: “viu como funciona?”.
Isso me faz lembrar de um episódio da minha infância (devia ter uns 8 ou 10 anos de idade). Na praia, no Guarujá ou em Santos, não lembro exatamente, com a família (algo que era bem eventual), vejo passar um daqueles aviõezinhos à hélice sobre o mar, carregando uma faixa com um anúncio qualquer. Meu pai se vira para mim em tom de brincadeira e fala: “esses aviões ficam passando aí para espantar tubarões”. E eu retruquei: “Mas aqui não tem tubarão!”. E meu pai bem-humoradamente respondeu: “viu como funciona?”.
Embora a resposta seja a mesma, as duas histórias diferem drasticamente. A incompreensão da relação de causa e efeito pode levar a situações esdrúxulas, como naquele episódio dos Simpsons em que, em razão do aparecimento isolado de um urso na cidade, implementa-se uma patrulha anti-ursos para livrar Springfield daquela ‘ameaça’. Melhor eu parar de contar. Veja aqui o início do episódio.
Essa é uma constante. Quantos exemplos não vemos por aí? A diferença está na profundidade com que o problema é analisado para o entendimento da relação de causa e efeito. O fato aparentemente isolado pode evidenciar um problema grave no sistema, exigindo uma solução duradoura e eficaz; ou pode ser apenas um caso isolado e, assim, deve ser tratado como ele é: um caso isolado.
Incêndio catastrófico numa boate do sul do país? Caso isolado ou sintoma de um problema mais grave no sistema de autorizações para funcionamento dos estabelecimentos e no controle do acesso a eles? Forças-tarefa são realizadas para vistoriar outros N estabelecimentos – similares ou não.
Briga de torcida fora do estádio em São Paulo? Impõe-se torcida única em jogos de times com grandes torcidas (os famosos ‘clássicos’). Nem sempre é evidente distinguir a causa do efeito, o sintoma do problema. E nesse caso, nada é preciso especular sobre ser ou não um caso isolado. O problema é sistêmico – e, mais do que isso, reflexo de outros problemas estruturais na nossa sociedade. A diferença fundamental reside no tipo de solução que se dá quando se observa um sintoma.
Está bem. Mas o que tudo isso tem a ver com o título do post?
Feito o adendo, voltemos para o caso sueco. Esse país, ao lado de seus vizinhos escandinavos, é sempre apontado como um exemplo de sociedade que funciona. Os baixos índices de corrupção e a forma espartana de vida dos parlamentares são exemplos de aplicação eficiente dos recursos. Constitui um contraexemplo ao discurso tradicional do “aqui não se faz nada por que o dinheiro não chega onde tem que chegar”. Será?
Esse é o exemplo de uma idea de que a corrupção precede a incompetência. Ou seja, como não chega o dinheiro (porque ele fica no caminho, em bolsos indevidos, nas mãos dos corruptos), não conseguimos fazer nada. Não temos recursos, não é possível gerenciar nada. A gestão é péssima. E assim vai. Na Suécia, como são honestos, os recursos chegam e eles podem gerenciar de forma eficiente e eficaz.
A minha proposta, como sempre, é inverter o raciocínio. Quanto se desvia em esquemas de corrupção? Não estou falando do impacto sobre a economia (já se falou que o escândalo da Petrobras gira em torno de algo entre 0,5% e 2,5% do PIB). Uma corrupção gritante seria de quanto? Algo como 15 ou 20% de um orçamento desviado? Parece uma suposição razoável (e irrealisticamente elevada!). Mas e os outros 80%?
São os 80% que não chegam por causa dos 20% desviados ou são os 20% desviados por causa dos 80% que não chegam onde deveriam? O senso comum vai na primeira hipótese: o dinheiro não chega onde tem que chegar por que fica no caminho. É verdade. Mas são os 80% que se perdem, resultado da incompetência da gestão. A realidade e a experiência corroboram a segunda visão.
Vamos ilustrar com uma parábola simples.
Imaginemos uma antiga civilização que quer construir pirâmides para tentar atingir o céu e venerar seus deuses. Imginemos também que essas pirâmides são feitas de paralelepípedos gigantescos, enormes blocos de pedra, extraídos e esculpidos em alguma pedreira longínqua. Como são muito valiosos, alguns espertinhos podem achar interessante “desviá-los” para a cidade vizinha (onde também se quer construir pirâmides) e ganhar algum dinheiro (ou o que seja) com a operação.
Se o desvio for de 20% dos blocos, alguém notará e fará alguma coisa para coibir esse tipo de corrupção. No entanto, se a incompetência for elevada, digamos, com muitas quedas e quebras de blocos no caminho, com muitos problemas de escultura no formato certo, levando a uma inutilização considerável dos blocos na hora de sua instalação, aí sim pode ser que os 20% desviados passem batidos. Se de cada 100 blocos, 50 ou 60 se quebrarem no caminho, quem vai olhar para 10 ou 20 que nem chegaram a ser colocados no sistema?
Ou seja, se o faraó (ou quem quer que seja o responsável pelo projeto) melhorar a sua gestão, em pouco tempo, ao resolver os problemas de transporte, escultura e instalação dos blocos da pirâmide, vai perceber que há desvio. E se o desvio for exorbitante como no exemplo, mais fácil ainda será de identificá-lo e de tomar medidas para evitá-lo.
Esse é o ponto em que eu queria chegar: a gestão (como sempre). Uma má gestão (a incompetência) abre as portas para a corrupção. Portanto, elevados índices de desvios precisam, necessariamente, ser precedidos por uma dose elevada de incompetência.
É claro que você poderia pensar que é possível ser muito competente e corrupto. Para isso, precisaríamos entender o que é ser competente. Até para manter elevados níveis de corrupção é preciso uma gestão eficaz (que o diga aquela grande construtora e o seu departamento responsável pelas propinas). Mas é muito mais difícil ser corrupto dentro de um sistema competente, que funciona. E essa é uma discussão para outro post.
A questão central é que, ao melhorar a gestão (criar mecanismos eficientes de planejamento, execução e controle), aplicam-se de forma eficiente os recursos disponíveis (aqueles 80% não desviados) e, em muito pouco tempo, dá-se falta dos outros 20%.
Já trabalhei dentro da administração municipal de São Paulo e era muito comum chegarmos a setembro ou outubro com vários departamentos em diversas secretarias e subprefeituras tendo executado apenas 40% de seu orçamento anual. Que planejamento é esse? Que gestão é essa? Onde estão os gargalos? Ou existe alguma justificativa razoável para se correr nos três últimos meses do ano para uma gastança desmesurada, a fim de executar o orçamento daquele ano? A essa altura, tudo vira urgente. Gere-se mal, gasta-se mal. Problemas não são resolvidos. Sobram recursos para atacar os sintomas.
Melhorar a gestão é o primeiro passo. E não estou falando só da área pública. Quem acompanha os outros posts do A Tal da Gestão sabe que sou igualmente crítico, não importa o tipo de figura jurídica ou o porte da organização. Gestão incompetente é aquela que ataca os problemas da forma errada, sem compreendê-los a fundo (criando uma estrutura – eficaz, mas cara – para prevenir ataques de ursos, como no episódio dos Simpsons). A gestão competente sabe olhar para os lugares certos e resolver os problemas de forma sistêmica. E para uma gestão competente é necessário ter gente competente (gestores e funcionários).
Mas aí pergunto: de onde vai vir a pressão para melhorar a gestão por aqui? E de onde virão os gestores competentes? Da Suécia?
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Excelente!
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